quinta-feira, 19 de julho de 2012

A Forja de Zandru- trecho 48


...
Depois de concluída a recepção formal, o rei retirou-se para seus próprios aposentos, onde jantaria com sua família e hóspedes mais tarde. Os cortesãos e hóspedes do feriado que ficaram no castelo seriam servidos à moda antiga, em mesas armadas no saguão central. Assim que Rei Felix saiu, servos começaram a correr com as preparações. Maura, Jandria e Orain desapareceram na confusão.
Cortesãos se reuniam em grupos e rodinhas, e Varzil percebeu como disputavam por vantagens entre si. Houve súbitas distinções, de quem cumprimentou quem, quem foi o primeiro a se retirar. Ele pegou lampejos de conversas. Duas damas, elegantemente vestidas em tartãs de Hastur de Carcosa, especulavam em voz baixa sobre problemas de genes recessivos próprios nos Ardais de Scaravel.
- Ao menos, infertilidade não será um problema, - uma torceu o nariz.
- Oh, isso é certo para Príncipe Rakhal e Dama Maura, pois ela é uma Elhalyn e, portanto, parente.
- Não tão próximos, - a primeira dama disse, batendo de leve no braço da amiga com seu leque dobrado. - Nada disso será consumado até que ela seja liberada de sua Torre e, diga-se de passagem, não será tão cedo. Não duvido que seja completamente esquecida.
- Querida! Estava certa que tinham sido feitos um para o outro, sendo criados juntos desde que eram crianças.
- Escreva o que eu digo, se ela demorar muito, o Rei arrumará outro casamento. Não me surpreenderia se tivéssemos um monte casamentos. Terei que encomendar uma dúzia de novos vestidos ao menos. O Rei está maravilhado com a idéia...
O olhar da dama passou sobre Varzil enquanto andava. Ela ergueu o queixo e virou-se, indo na direção da assembléia.
O jovem atarracado que havia lembrado Rei Felix da morte do pai de Carolin agora forçava seu caminho pela multidão para cumprimentá-lo. Eles se abraçaram como parentes.
- Estes são meus amigos de Arilinn. Meu primo, Rakhal. - Carolin inclinou-se na direção de Rakhal para que pudesse ouvir sem gritar. - Meu tio... quanto tempo está desse jeito?
- Ele ficará melhor agora que você está aqui, - Rakhal respondeu no mesmo tom. - Devo atendê-lo em seus aposentos agora. A excitação de hoje foi demais. Ele não é forte, você sabe. Ficou sentado por horas nos últimos dez dias, ouvindo casos que não devia ter vindo para a cortes. Mas um pouco de cuidado o fará bem. - Rakhal inclinou-se e virou-se em direção à plataforma.
O segundo ficou para atrás. Varzil julgou-o curiosamente, pela semelhança inicial entre eles, Carolin e Rakhal, ser forte, indo além do marcante cabelo vermelho. Portanto, se precipitara. Esses três podiam ser parentes de sangue, mas não eram nada parecidos. Enquanto Carolin mantinha uma graça inconsciente e Rakhal parecia apático, um homem que viria a engordar sem o hábito do exercício e autocontrole, este jovem era magro e nervoso, com uma certa inquietação. Seria bom para ele, Varzil pensou, uma ou duas temporadas de treinamento na Torre.
Jandria emergiu da multidão, de braços dados com Maura como se fossem irmãs. Seus olhos vacilaram na plataforma vazia. - Veremos pouco Rakhal esta noite, enquanto ele arca com todas as responsabilidades pessoais como ajudante de ordens do Rei, - ela comentou com ninguém em particular.
- Você diz isso como se não fosse uma coisa boa e nobre, - o segundo jovem disse.
- Não seja tão sensível, Lyondri! - Jandria replicou.
- Somos todos conscientes de quão obediente é Rakhal, - Maura disse ao mesmo tempo.
- E se algum de nós esqueceu disso, - Jandria continuou sem tomar fôlego, - você certamente nos lembrará. Poupe-me! Levarão ao menos uma hora arrumando aqui e os aposentos do Rei. Vamos achar Orain e nos mandar daqui.
- Estou aqui, - Orain falou a um passo atrás de Carolin. Ele andava tão firme e em silêncio que Varzil não o percebera se aproximar. Cortesãos passavam por eles, pedindo desculpas. - Rakhal mandou seus cumprimentos e pediu que fossemos sem ele.
- Então vamos cair fora daqui antes que sejamos pisoteados, - Maura foi empurrada sem querer por um cortesão. - Estamos bem no meio da passagem da cozinha. - Ela virou-se para Lyondri. - Você vai conosco?
Lyondri concordou e estendeu o braço para ela. Jandria seguiu sozinha e Orain ao lado de Carolin, deixando Varzil e Eduin o seguirem.
Uma jovem serviçal, corada pelo esforço, pulou para o lado ao evitar ser derrubada pela saia de uma dama e tropeçou sob o peso de seu fardo, um enorme jarro de cerâmica. Ela colidiu com Eduin e o jarro derramou vinho para todo o lado antes de cair, miraculosamente inteiro, no chão. Agachando-se, ela pegou o jarro, mas não antes de deixar escapar uma poça de líquido vermelho. Então ergueu os olhos para ver as manchas escuras na bela camisa de linho e casaco de Eduin.
- Oh, senhor! - ela gritou, sua face corando ainda mais. - Sinto muitíssimo, senhor!
Eduin esfregou seu casaco, mas foi inútil. As gotas já haviam penetrado no tecido.
- Oh, senhor! - A garota estava quase às lágrimas, ficando mais incoerente a cada instante. Com suas mãos nuas, tentou juntar a poça derramada. Ela se aproximou como se fosse limpar a roupa de Eduin, mas ele se afastou.
- Sua estúpida... - Eduin bradou. - Não toque em mim! Já não aprontou o bastante?
A garota encolheu-se, abraçando a si mesma.
Ela já foi agredida antes. Nenhum servo em Água Doce jamais fora agredido, não importa qual fosse sua falha. Dispensado, sim, ou julgado e punido. Dom Felix uma vez mandara enforcar um homem por envenenar um poço que levara duas crianças à morte. Mas aquilo fora um ato de maldade. Uma surra apenas aumentaria a má sorte.
- Eduin, está assustando a pobre garota... - Varzil começou.
- Olhe para essas manchas! Como poderei jantar com o Rei vestido assim?
Varzil nunca vira Eduin tão nervoso, e por um motivo tão trivial. Então se lembrou de como Eduin havia exibido sua roupa emprestada mais cedo naquela noite. A própria família de Varzil vivia com simplicidade, mas tinham terras e servos, roupas quentes, comida decente, bons cavalos para cavalgar. Nunca passaram necessidade. Havia sido presenteado com algo mais belo do que aquilo pelo Conselho Comyn, ter sido aceito entre eles como igual. Ele nunca... e agora olhava para Eduin com novos olhos... tinha sido pobre.
Outros detalhes chegaram a ele, as origens obscuras de Eduin, os rumores de que seu nascimento fosse um resultado infeliz entre uma dama bem nascida e um cavalariço, mesmo seu cabelo, castanho em vez dos tons de vermelho tão comum naqueles com laran. Não era de admirar que Eduin permanecesse sempre tão sério, mal humorado sobre sua posição em Arilinn. Não é de admirar que reagisse com ciúmes a qualquer intromissão entre sua amizade com Carolin, seu ressentimento pelo avanço rápido de Varzil. Varzil podia apenas imaginar quais cicatrizes ele escondia por trás daquelas polidas barreiras, medos de que o pouco que tivera na vida lhe fosse tirado tão facilmente.
Varzil agachou-se ao lado da garota, focalizando seu laran através de sua pedra-da-estrela. Era algo simples o bastante aumentar a tensão superficial do vinho. Em vez de um lençol de líquido, rapidamente espalhando pelo chão, ele assumiu uma forma redonda. Tocando a camada externa, Varzil era capaz de pegá-lo como uma bolsa de geléia e facilmente colocá-lo de volta no jarro. A garota, que estivera observando com os pulsos sobre a boca em espanto, deu um pequeno grito.
Varzil ajudou-a a erguer o jarro e balançou-o em suas mãos. Com um olhar de ingênua adoração, ela se afastou rapidamente.
- Olhe por onde anda! - Eduin gritou para ela. - Varzil, não sou o Guardião de sua consciência, mas não devia desperdiçar seu laran tentando ajudar. A garota era desajeitada e devia limpar tudo sozinha. Esse é o único jeito de pessoas como ela aprenderem algo.
Varzil duvidava que ser publicamente humilhada e agredida ensinasse algo a garota senão que nobres deviam ser evitados. Relembrando a sabedoria de cozinha de Lunilla, ele disse, - Essas manchas de vinho evaporarão facilmente, especialmente se fizermos isso antes que sequem. - Ele abaixou as barreiras de seu laran em uma abertura para trabalharem juntos.
- Não quero sua simpatia! - Eduin replicou. - E certamente não preciso de sua ajuda!
Varzil afastou-se surpreso. Eduin tinha sido cortês, se não publicamente amigável, desde que trabalhavam juntos no círculo no último ano. Não tinha idéia do que havia feito para merecer tal resposta... talvez nada. Talvez fosse meramente um alvo conveniente.
Ah, Varzil pensou, nem todos os ferreiros da forja de Zandru podiam emendar um ovo quebrado ou a natureza teimosa de um homem, ou então isso seria gentileza de seu pai.
- Devo dizer aos outros que se juntará a nós em breve, então? - Varzil disse. Sob outras circunstâncias, ele teria permanecido ali, para que Eduin não fosse deixado sozinho em um local tão confuso. Claramente, sua presença estava sendo tão irritante quanto o barulho nos brocados de marfim.
Varzil desceu o corredor até os aposentos de Carolin, passando por guardas de pé e portas fechadas. Maura colocou a cabeça para fora da porta mais larga e acenou para ele. - Sean, - ela falou para o guarda do lado de fora, - fique atento com Eduin.
A sala de estar de Carolin era quase tão larga quanto o vestíbulo de reuniões familiares em Água Doce. Se todas as suítes fossem assim tão grandes, não era de admirar que o castelo ocupasse tanto território. Varzil olhou ao redor para os ricamente decorados carpetes de Ardcarran, os painéis de pedra azul translúcido, tão belos e perfeitamente igualados que só podiam ter sido feitos por trabalho de matriz, os profundamente almofadados cadeiras e divã, a mesa baixa de madeira escura localizada em um mosaico cinza e madre-pérola. O calor encontrou sua face nua vindo da lareira com sua cobertura de mármore esculpido em relevo tamanho real de Aldones, Senhor da Luz, e seu filho, o primeiro Hastur, o único que se tornara mortal pelo amor da Abençoada Cassilda e assim fundara o clã de seu nome.
Carolin e Orain já haviam se acomodado no divã em frente à lareira, com Jandria em uma cadeira de braços. Lyondri mudava de um pé para outro como se incapaz de decidir se ficava ou não.
Maura puxou uma das duas cadeiras restantes para uma distância confortável da lareira e gesticulou para que Varzil fizesse o mesmo. A cadeira era de madeira, embora de um gracioso modelo e excelente artesanato, amaciada apenas por uma almofada feita à mão. Ela sentou-se, costas retas, pés meticulosamente enfiados sob suas saias e mãos dobradas no colo.
Varzil tomou seu lugar. - Não há nenhuma cadeira para Eduin.
- Podemos mandar Sean buscar uma, - Carolin disse.
- Isso contraria o propósito de se ter um guarda, já que você insiste em ocupá-lo com afazeres domésticos, - Lyondri disse. - Talvez as coisas sejam diferentes em Arilinn.
- Acho que nós três conseguimos defender a honra das damas, se é com isso que está preocupado, - Orain disse em poucas palavras.
Lyondri praguejou e estava prestes a responder quando Jandria caiu na gargalhada e disse, - Orain, nós podemos cuidar de nossa própria honra!
Maura completou, levemente, que com dois e meio leronyn treinados na Torre, o meio sendo Carolin, ou três e meio quando Eduin aparecesse... elas não tinham nada a temer. - Prefiro suspeitar sermos nós que acabaríamos por defender o pobre Sean e não o contrário.
Mas ninguém fez nenhum comentário sobre não ter nada a temer, ali na sede da família Hastur. O poderoso Reino de Hastur podia estar em paz no momento, mas isso não garantia a segurança pessoal do Rei e seu herdeiro.
Arilinn, com seu Véu que admitia apenas a entrada daqueles dotados com laran, era uma fortaleza isolada. Em um círculo, nas salas de treinamento, mesmo nas reuniões noturnas, pessoas compartilhavam a intimidade da mente. Certamente nenhum intruso podia penetrar aquela comunidade.
- O que é isso? - Maura inclinou-se na direção dele.
Varzil balançou sua cabeça. Um pequeno calafrio, meio premonição, passou por seus ombros. - Estava pensando em Arilinn, que é tão... tão reservada.
Lyondri perguntou de onde viera antes de Arilinn. Embora a questão fosse educada o bastante, havia algo nela, como uma lâmina saindo silenciosa de sua bainha.
Varzil não se ofendeu, embora essa fosse a intenção. Havia intuitos dentro de intuitos ali, como um rio com rochas ocultas e bancos de areia, profundos e inesperados redemoinhos, rápidos em derrubar um barco nas rochas famintas. As ensolaradas margens musgosas, como a mobília suntuosa, eram como iscas e desafiavam os desavisados. Ele ainda não sabia quais eram seus aliados, ou quais usavam aquele sorriso falso por interesse próprio e malícia.
Ele replicou, fingindo que aquela fosse nada mais do que uma dúvida cortês, mas antes que houvesse dito algumas poucas palavras, Eduin chegou junto com um grupo de servos que carregavam travessas de cerveja quente temperada, pão, maçãs frescas de inverno e tigelas cheias de nozes com mel e biscoitos redondos aromatizados com casca que Varzil reconheceu como sendo uma delícia especial do Solstício de Inverno com sua cobertura de cristais açucarados. Ele percebeu, também, que o casaco de Eduin já havia voltado à sua aparência imaculada. Varzil sentiu o fraco resíduo da força mental que Eduin usara para remover as manchas de vinho.
- Ah, Eduin! Salvou-nos de passar fome! - Carolin gritou. Pegando a travessa de nozes, ofereceu-a aos outros. Maura pegou um pouco, assim como Orain e Lyondri, mas Jandria disse esperaria pelo jantar.
Ao aroma da comida, Varzil sentiu uma onda de náusea. Instantaneamente identificou como uma combinação da fadiga natural após uma longa jornada e o desgaste de seu laran quando recolheu o vinho. Ele mordeu um pãozinho doce e recusou o vinho quente, sabendo o quão forte seria seu efeito, devido sua fome. Precisava manter todo o seu controle.
Eduin, também, ajudou-se com os doces repositórios de energia, embora aceitasse uma taça fumegante. Por um longo e estranho momento após os servos saírem, os novos amigos ficaram sentados ou de pé, concentrados em sua comida.
Carolin rompeu o silêncio, dirigindo-se para seu primo, Lyondri. - Rakhal está atrasado hoje. Estará rejeitando nossa companhia?
- Ele tem ficado mais junto do Rei desde que você foi para Arilinn, - Orain disse com uma estranha hesitação.
- Você diz isso como se isso não fosse o papel certo para um parente, - Maura replicou rudemente. - Quem mais deveria atender Sua Majestade quando esta mais precisa?
Carolin parou, colocando a travessa de nozes ao lado das outras vasilhas. Ele franziu a testa e firmou a voz. - Não fui informado que o Rei estava doente. Porque não mandaram uma mensagem para mim em Arilinn?
- Ele não está exatamente doente, nada mais do que enfermidades naturais da idade, - Maura disse. - Para algumas indisposições não há cura.
- Não havia razão para incomodá-lo, - Lyondri completou. - Príncipe Rakhal supervisionou pessoalmente cada aspecto dos cuidados do Rei.
- Príncipe Rakhal? - Carolin disse, sua cabeça se erguendo. - Tornamo-nos tão formais uns com os outros?
- Ele é o filho do irmão mais jovem do Rei, - Lyondri disse, inclinando-se para Carolin, - mesmo que você seja do mais velho, Sua Alteza. Seu retorno a Hali aproximou-o ainda mais do dia em que ocupará o trono. Precisa também assumir a dignidade de sua posição.
Carolin olhou de Maura para Orain, chegando em sua prima, Jandria, para ver se algum deles tinha levado a sério aquela declaração.
- Não somos mais companheiros de brincadeira, pensando em nada mais do que no divertimento de amanhã, - Maura disse gravemente. - Lyondri disse certo.
- Maura, nunca desejei nada mais do que sua verdadeira amizade, - Carolin disse.
- Você será meu Rei um dia, - ela insistiu, - e esse é um destino do qual nenhum de nós pode escapar.
Carolin sentou-se ao lado de Orain e esticou as pernas em direção à lareira. - Por favor, não se preocupe com essas questões de títulos. Há forças suficientes no mundo para separar até mesmo irmãos, sem a necessidade de distinções artificiais. Aqui, nesta sala, nossos primos e amigos juntos. Certamente todos lembram das horas que brincamos juntos quando crianças nesses mesmos saguões. Venha agora, sente-se ao meu lado, Lyondri. Fique à vontade. Vamos aproveitar este tempo de festival, renovando laços com os velhos amigos e saudando os novos. Haverá tempo o bastante depois para discutir questões de estado.
Algo estranho passou pelas feições de Lyondri enquanto se sentava na cadeira. A insignificância de estar situado à mão direita de Carolin claramente não o escapara. As linhas tensas de sua boca e maxilar se suavizaram, dando-lhe uma expressão mais aberta e generosa.
E assim ficaram, falando sobre coisas inconseqüentes... o nascimento de um potro da égua favorita de Orain, o casamento de uma dama visivelmente grávida de outro homem, a desastrosa experiência da cozinheira com um bolo no formato de um dragão voando... até que enfim o jantar foi anunciado e eles desceram as escadas com um alívio amigável.

 Continua...

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