sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A Forja de Zandru - trecho 53

...

Do círculo de trabalhadores abaixo surgiam vozes, abafadas e estranhamente compassadas. O ligeiro contato com a matriz havia trazido Varzil ainda mais àquele mundo. Haviam notado a sua presença. Uma mulher, seu cabelo agora visível como uma onda de vermelho-claro sob um cinza místico, olhou em sua direção. Varzil recuou, subitamente relutante em se fazer visível antes de saber o que acontecia ali. O olhar da mulher continuou a cruzar a sala sem parar. Seu questionamento mental passou por ele como se não estivesse ali. A sensação de perturbação, de ver e ouvir ecos, aumentou. Aquela leronis era alerta e habilidosa, mas ainda assim não podia vê-lo.
O que estava acontecendo?
Estaria olhando para o passado, para eventos impressos na própria substância do pilar de pedra?
Sim, devia ser. Aquelas palavras que conseguiu distinguir tinham uma estranha entonação arcaica. Mas e se estivesse visualizando algum antigo círculo em andamento, significaria que uma Torre esteve lá um dia, no meio do lago? Porque não havia recordações daquilo, nem mesmo em arquivos de Arilinn?
Aonde ele estava? Quando ele estava?
Abaixo, a mulher que olhara para cima voltara ao seu trabalho. Varzil sentiu o Guardião projetar-se ao círculo e começar a reuni-los em uma unidade única. O laran do Guardião parecia turvo e distante. Com uma técnina totalmente estranha à Varzil, ele reuniu cada membro. Se Varzil não se enganara, este Guardião tecia suas mentes humanas no padrão da própria matriz. Não apenas isso, ele o fazia tão facilmente como se já o tivesse feito muitas vezes antes, e não havia nenhum sinal de resistência do círculo. Por sua vez, eles aceitavam como normal aquela manipulação de suas mentes humanas para a estrutura inorgânica e mecânica da matriz.
O que Varzil testemunhara não devia ser possível... pedras-da-estrela, mesmo unidas e sintonizadas até o mais alto nível, podiam apenas amplificar as energias mentais naturais que passavam através delas. Eram as pedras que serviam os humanos, não ao contrário.
Senhor da Luz! Que coisa sobrenatural estava acontecendo ali? E o o que pretendiam fazer depois?
Ele precisou de toda a disciplina de Arilinn para permanecer imóvel, para não tomar qualquer ação precipitada, revelando a si mesmo. Não podia arriscar uma explosão emocional.
Enquanto os membros do círculo saltavam, um a um, para a união com a matriz, suas personalidades individuais se dissipavam. O entrançado de teias pulsava, primeiro suavemente, depois mais rápido e radiante enquanto mais mentes se uniam. Os contornos dos homens e mulheres turvaram e a sala escureceu, mas talvez fosse apenas um contraste com o brilho crescente da matriz. Cada nova explosão de radiância lavava de azul-cinzento as faces dos trabalhadores.
A sala em si parecia deslizar e se distorcer. Lá fora, montanhas se erguiam nuas e escuras como presas famintas sob uma única lua. Varzil conhecia apenas um lugar em Darkover onde montes tão desertos e sem vida erguiam seus picos solitários para o céu vazio.
Não pode ser Halt, Varzil pensou. Deve ser algum lugar nas profundezas das Hellers. Mas desde a destruição da Torre Tramontana há uma geração, não havia círculos trabalhando em toda aquela cadeia de montanhas.
Não importava a sensação inquietante, nem o estranho eco de som e imagem. Ele não estava apenas olhando para o passado, mas ultrapassava a distância de meio continente. Um pensamento surgiu no fundo de sua mente, um do qual ele não gostou nem um pouco.
Aldaran.
O pensamento trouxe uma terrível revelação. O círculo lá embaixo estava completo, em ofensiva união com a gigantesca matriz. A sensação de relâmpago e cinzas voltou até dominar cada fibra de sua presença. O foco de energia não subia ultrapassando nuvem ou chuva, mas descia. O círculo ia em direção ao centro do planeta, procurando as linhas de seus campos magnéticos.
Para reunir aquelas enormes forças inumanas… e fazer o quê? Mandá-las para onde?
Halt A Torre de Hali?
O pensamento ressoou em sua mente como o bater de sinos.
Hali! Hali! Hali!
Uma onda de alerta lhe respondeu, uma quebra na concentração do círculo abaixo. Eles o tinham ouvido.
- Demônio! Espião! - Como fogo verde, laran foi atirado em sua direção. Reflexivamente, ele se atirou para trás.
Não! Vim como amigo!
- Segurem este imyn!
A próxima onda de energia, um instante após o primeiro ataque, espalhou-se como uma teia ardente. Horrorizado, Varzil a viu correr em sua direção. A sala girou ao seu redor.
O primeiro fio o tocou. Lançou-se através de sua forma astral, cáustico como ácido. Agonia o invadiu. O ar explodiu em seus pulmões. Sua visão tornou-se branca, depois cinza. Não podia ver o círculo sob ele, nem mesmo as antes radiantes pulsações da matriz nem sua própria forma espectral. Encolheu-se em uma partícula de dor, uma partícula que se movia, devagar e inexorável, para baixo. Uma garganta escura se abriu para engoli-lo.
Não!
Seu grito mental soou fraco e metálico, mas ao menos ele tinha uma voz. Reuniu toda sua determinação para o próximo arremedo.
- EI.
Os ecos batiam no cinza infinito. Vagamente, ele avistou o círculo, os pontos de luz encoberta por sombras, as pálidas paredes. Força reuniu-se lá embaixo, sombria e transbordante.
Hali… devo avisá-los em Hali…
Varzil se afastou, recuando através das paredes da Torre. Avistou as montanhas por um instante antes de sumirem na névoa. Por um instante, temeu que tivesse entrado no Mundo Superior, aquele estranho reino mental onde não havia tempo nem distância. Mas não, não havia o chão cinza suave, nenhum céu incolor, nem luz opaca sem direção, nenhuma das marcas que ele lembrava de sua breve visita supervisionada.
Ele flutuava em um mundo de vapores dançantes, entrando em redemoinhos e correntes… como as nuvens-água do lago.
O Lago de Hali.
Ar, pesado e úmido, tocou sua pele, ganhando substância à cada instante. Ele sentiu a torção no estômago do deslocamento no tempo…
Não! Não posso voltar, ainda  não! Não antes de avisá-los!
Hali. Embora nunca tivesse entrado na antiga Torre, ele visualizou-a em sua mente do modo como a vira naquela mesma manhã, uma alta e esguia estrutura, graciosa e impenetrável. Conhecia as mentes dos que trabalhavam agora nas transmissões em Hali, mas não devia pensar neles naquele momento, senão seria sugado ainda mais rápido para o presente.
Devia se concentrar no que Hali tinha sido, as pedras envelhecidas recém talhadas, seus contornos lisos e limpos, os painéis translúcidos ainda novos. Um lago de água comum soprado pela brisa da manhã, partículas de luz dançando à luz do sol. Uma cidade entre o lago e a Torre, branca como marfim inundado pelo brilho de flâmulas e bandeiras, árvores, jardins, fontes decoradas com jóias. Uma cidade de paz e esplendor como nenhuma vista antes por ele, e por todo o lado a marca artesanal do laran, mentes utilizadas para criar um paraíso.
As imagens vinham mais fortes e viçosas agora, com uma urgência que não podia conter. Seus sentidos ficaram alertas, ressonando com a tensão estendida como um manto invisível sobre a Torre  e todas as terras ao seu redor.
Hali! A Torre! Certamente havia uma leronyn acordada à essa hora que poderia ouvi-lo, mesmo sem a ajuda das telas de transmissão.
Enquanto sua mente se projetava em muda saudação, ele bateu contra uma parede mental tão sólida, que o impacto o atordoou. Apenas a ação concentrada de um círculo completo podia produzir uma barreira tão forte. Nem um sinal de presença escapava lá de dentro.
Escutem-me! Ele reuniu toda a sua força no grito silencioso. Vocês estão prestes a ser atacados! Cuidado! Preparem-se!
Por um longo momento, não houve resposta. Ele devia estar gritando para o vento. Havia trabalhadores de laran ali, reunidos em um círculo, mentes focadas, disso ele tinha certeza. Tinham voltado do mundo exterior e se armado contra intrusos. Talvez já soubessem do ataque iminente e se preparavam para ele.
Ele percebeu que os eventos testemunhados no dia de hoje haviam acontecido. Seus avisos eram inúteis. Não havia nada que podia fazer para mudar o passado.
Como seria bom pensar daquele jeito, simplesmente imaginar-se de volta em seu próprio tempo e espaço. Essas pessoas já estavam mortas. Porque se empenhar em salvá-las quando inevitavelmente pereceriam de idade ou doença, mesmo se escapassem de qualquer arma monstruosa que Aldaran esteja até mesmo agora preparando.
Mesmo agora…
Varzil não pôde recuar. Ele sabia, e com o conhecimento vinha a responsabilidade.
Talvez suas próprias ações ali tinham salvado Hali e todo o seu povo de uma catástrofe ainda maior. Talvez não tenha mudado nada. Qualquer que fosse o resultado, ainda teria sua própria consciência para encarar… se sobrevivesse.
Ele flutuou sobre o lago, as águas claras ondulando suavemente com o beijo da brisa da manhã. Por instantes, sentiu uma pressão crescer em suas profundezas azuis. À princípio, não houve sinal visível, ainda assim ele nunca duvidou.
Pressão… iminência… A sensação de algo enorme e terrível se condensando. Formando, crescendo. Não notara o quão escuro e frio eram as profundezas do lago.
Frio… mas não o frio que vinha do gelo, o familiar frio do inverno. Era um frio que nenhum fogo podia esquentar. O lago, que parecera tão agradável, agora tornava-se um útero para algo indescritível, uma coisa além da imaginação humana, concebido nos infernos congelados de Zandru.
A manhã escureceu, todo o brilho se apagou. A superfície do lago surgiu, turbulenta, como uma coisa viva contorcendo-se na agonia do nascimento. A Torre em si a chamava, a convocava, puxava para a frente como uma cruel parteira.
Varzil tentou visualizar o formato, vasto e sombrio, no chão do lago. As águas o escondiam bem.
 De repente, o céu ganhou vida. Trovejou. O céu ficou branco. Nuvens, cinzas de raiva, vinham violentamente do norte. Embora não tivesse forma física, Varzil tremeu diante da rapidez e violência da tempestade. Ele conhecia trovão, relâmpago e aguaceiro, o aterrorizante deslizamento de pedras e as enchentes. Mas isto, isto era completamente outra coisa.
Focados como estavam na forma sob o lago, os trabalhadores de Hali reconheceriam o perigo iminente? Ou se achariam invulneráveis na Torre de pedra à prova de fogo?
Hali! Ele chamou de novo. HAA-LL-II-II-IH!
Um som como de uma avalanche preencheu o céu. Diferente de um trovão, este não cessou, mas crescia à cada segundo. Na cidade, as pessoas saíram de suas casas para amontoar-se nas largas avenidas. Varzil não podia ouvir, mas sentiu seus gritos e explosões, enquanto as estruturas de madeira pegavam fogo.
As águas subiram, espumantes. As margens do lago estavam nuas, embora as profundezas permanecessem invioladas, como uma fortaleza. Por todo o lado, árvores tombavam. Muros de pedra quebraram e caíam. O cheiro de sangue e fumaça erguia-se da cidade.
Varzil prendeu a respiração, rezando para as nuvens soltarem seu fardo de chuva, apagarem os incêndios, dissipar a terrível tensão. Não haveria aguaceiro nesta tempestade, ele percebeu, mas algo ainda pior.
A Torre ainda se mantinha muda e inacessível. E ainda a coisa no lago crescia. Sobre ela, no ventre da nuvem mais espessa e raivosa, escuridão se condensava em um nó.
O céu atingiu a terra. Luz explodiu sobre a Torre. Em um instante, toda a cor se desvaneceu. A cidade estava coberta de cinzas e nada se movia enquanto a luz se dissipava.
Ainda sem resposta da Torre. O foco do círculo tornou-se frenético, como se correndo contra o tempo.
Eles pensam que podem resistir ao ataque e completar sua própria arma, a coisa sob o lago. E qual, Varzil se perguntou, seria o pior destino para o mundo inteiro?
O trovão crescia, mas agora veio a resposta. No início, era apenas um eco, um ressoar. O céu havia atingido a terra e agora a própria terra respondia. Por todo o lado da Torre, cidade e lago, algo retumbou do próprio centro do leito de rochas e ainda mais fundo. 
O lago começou a borbulhar. Vapor subia em jatos da superfície. Uma forma surgiu através das ondas, enorme e negra como noite sem lua, disforme em seu súbito nascimento. Gritava enquanto surgia, o som crescendo acima do clamor do céu e da terra. Qualquer criatura que tivesse sobrevivido certamente ficaria surda. O corpo não fora feito para aguentar tal poder inumano, e mesmo a tênue forma mental de Varzil reverberou com aquilo.
Por um tempo - um instante, uma hora, não podia dizer - Varzil perdeu toda a noção de quem era e onde estava. Ele se encolheu, disforme e imóvel, sem direção ou sentidos.
Ventos invisíveis o atingiram, rebatendo a partícula de personalidade que era Varzil. Não via mais o choque de forças elementares à distância. Transformara-se em um redemoinho de si mesmo. Golpeado e rebatido, ele se segurou aos farrapos de pensamento. Cada momento arrancava alguma parte sua… seu nome foi levado pela corrente, ecoando, Varzil, Varzil, Varzil… até que as sílabas desapareceram no caos.
Memória fragmentada, pedaços de imagens como pétalas espalhadas na terra… a sensação de seus braços e pernas… comida quente em seu estômago… o brilho nos olhos do homem-gato… o sorriso de Carolin… Dyannis saltitando pela cozinha, carregando o buquê do Solstício de Verão que ele colhera para ela… a voz de seu pai, rouca de emoção…
Som moldou-se em melodias… uma voz… uma palavra...
- Varzil!
A reação vinha de longe. Havia algo que devia saber. Devia fazer.
Cinza o envolveu, o único mundo que já conhecera, o única mundo que já existira. Atemporal, pairando eternamente. Silêncio.
- Varzil, você tem que respirar!
Pequenas e sem sentido, as palavras o envolveram, passaram por ele. Deixavam pequenos redemoinhos de discórdia, rapidamente se acalmando.
Tão quieto, tão cinza… Tudo que sempre quisera. Tudo que sempre fora.
- Respire, desgraçado!
Algo molhado e macio tocou sua boca. Ar forçou seus pulmões. O cinza se dissipou. Estremeceu com uma batida... lub-DUB, lub-DUB. Então o barulho sumiu novamente, deixando tudo quieto. Ele vagou novamente em direção ao cinza, sereno e eterno.
Um suspiro, depois outro. A solidez formou-se ao seu redor, mãos em seus ombros, dedos apertando sua carne. Cabeça, pernas e estômago apertado. Começou a tossir, algo molhado espirrou de seus lábios. Ele respirou novamente, ouviu o chiado em seu peito.
Cinza... sim, havia cinza, mas além dele, correntes místicas que afinavam e se partiam enquanto as atravessava, meio andando, meio flutuando. Um forte braço envolveu-o pela cintura, levando-o adiante.
- Vamos, você consegue. - A voz soava pastosa através da névoa. - Continue, assim. Estamos quase lá. - Varzil concordou, sua garganta estranha demais para falar. Cambaleou ao subir, em direção à luz do sol. Arrastava os pés, escorregou em algo, levantou de novo. O chão ficou íngreme, mas a luz aumentava. Longos arbustos dançantes deram lugar à areia salpicada de rochas. Ele tropeçou de novo, apoiando-se nas mãos e joelhos, e arrastou-se pelo resto do caminho.
A cabeça de Varzil tocou a superfície de água-nuvem no exato momento em que não tinha mais forças. Pegou fôlego antes de afundar. Nesta hora ele soube quem o havia levado, arrastando-o pelo resto do caminho e o estendido na margem, quem se inclinou sobre ele, olhos cinza escuros de preocupação.
 Carolin ajoelhou-se ao seu lado e o virou. Sua pele e roupas estavam pingando, seu rosto corado exceto pela palidez ao redor dos olhos e boca. A umidade escurecia seu cabelo vermelho, brilhante contra seu crânio. Varzil sabia que ele mesmo estava ainda pior.
Quando Varzil tentou falar, seu dente começou a bater. - Você... viu... - As palavras saíam em uma confusão de sons.
- Fique quieto.
Outro homem agora se inclinava sobre ele. Magro demais, olhos preocupados. Orain.
- Não sei o que aconteceu, - Carolin dizia, sua voz abafada como se estivesse longe. - Ele começou a gritar e teve convulsões. Depois parou de respirar. Eu o retirei o mais rápido que pude.
- Parece que esteve no mais frio inferno de Zandru e ainda não voltou totalmente, - Orain disse.
Mais frio inferno de Zandru. Quase isso.
Varzil começou a tossir violentamente. Sentiu-se consumido pelo cansaço, como se tivessem lhe sugado corpo e espírito.
Eu vi... eu vi o que aconteceu. O Cataclisma!
-... ensopado, - disse Orain. - Coloque meu manto em volta dele. Levante-o e ponha-o no cavalo... leve-o para a Torre... eles saberão o que fazer.
A Torre! Não!
Mas a outra Torre Hali jazia no passado distante, inimagináveis anos atrás, os trabalhadores que invocaram a coisa no lago estavam mortos, assim como seus companheiros em Aldaran. Fraco como um bebê, Varzil permitiu-se ser envolto pelo grosso manto seco de Orain e foi colocado nas costas de um cavalo.
 


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