sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A Forja de Zandru - trecho 55

...

Quando Carolin chegara à Torre Arilinn no verão passado, sentira como se estivesse penetrando um mistério à cada degrau. Os jardins externos e o portão de madeira davam caminho ao arco do Véu. Como a Torre, a cidade de Arilinn era murada por segurança. Na estação que estudara ali, nunca acostumara à sensação de viver em uma fortaleza.
Mas Hali era uma cidade sem muros, extensa e exposta. Uma cidade, ele sempre pensara, que recebia o mundo sem medo. Uma cidade construída sob a presunção de paz. Aquilo não era, de fato, verdade... como ele bem sabia. Mas a cidade dava a ilusão de tal tranquilidade que ele às vezes se perguntava, como agora, como seria viver em um tempo quando invasão de exércitos ou ataques psíquicos não representavam nenhuma ameaça.
Enquanto se aproximavam da Torre, dois homens usando os familiares mantos de trabalho apareceram. Um deles se apresentou como monitor do Primeiro Círculo.
- Meu amigo... - Carolin começou.
- O que aconteceu com ele? - o outro homem interrompeu. - Sentimos um grande distúrbio vindo do lago.
- Precisamos levá-lo para dentro, - o primeiro homem disse, - onde poderá ser aquecido e tratado adequadamente.
O que estava errado com Varzil não era o frio, Carolin pensou. Ele não protestou enquanto os dois leronyn carregavam Varzil para dentro. Ele seguiu, sentindo a onda de terror enquanto passava pelos portões externos. Como Comyn e Hastur, descendente daquele Hastur filho de Aldones, Senhor da Luz, ele tinha sido admitido na Torre em várias ocasiões, tinha visto a rhu fead e as coisas sagradas. Nunca pensara que seria indiferente àquele lugar. Hali não era a Torre mais antiga em Darkover e nem mesmo a mais poderosa, mas era um lugar inigualável.
Orain ficou no vestíbulo, inquieto. Se aquele lugar era fonte de terror para Carolin, que tinha nascido pra isso, o quanto intimidante não devia ser para seu comum irmão-adotivo.
Eles deitaram Varzil no aposento de hóspedes e colocaram pedras aquecidas e embrulhadas aos seus pés e um emplastro de mostarda em seu peito. Um segundo monitor, uma mulher alta cujos cabelos cinza-claros não revelavam sua cor original, entrou para ajudar.
Carolin foi convidado a esperar no vestíbulo externo. Embora houvesse um banco, de madeira com acabamento em cetim, ele preferiu ficar em pé, braços cruzados e mãos fechadas. Na verdade, preferia ter esperado lá embaixo com Orain. Pelo menos teria alguém com quem conversar.
O que quer que aconteça com Varzil, qualquer ferimento provocado no lago, Carolin sabia ser sua própria responsabilidade. Se ao menos não tivesse insistido para terem uma manhã de aventuras e perigos. Se ao menos tivesse ficado no castelo, como qualquer um com juízo e decoro. Rakhal ou Lyondri não teria saído atrás de diversão, arriscando a vida de um amigo ou até mesmo sua sanidade. Por que, por que julgara ser uma grande aventura viajar até Hali e o lago.
Se continuar pensando assim, teremos dois pacientes para atender, e qual benefício haveria nisso?
Aflito, Carolin virou-se para ver uma figura esguia de manto que havia chegado, em silêncio, ao seu lado. Por um instante, o cabelo e a leve estrutura o lembraram de Varzil, mas esta era claramente uma jovem mulher, que olhava para ele com olhos dançantes.
- Desculpe-me... damisela, mas eu a conheço?
Ela sorriu, mostrando covinhas, e acenou com a cabeça em direção ao quarto.
- Sou Dyannis Ridenow e é meu irmão que está lá com eles. O que fez com ele?
As palavras foram ditas com leveza, sem malícia, mas Carolin recuou. Se Varzil morresse ou vivesse como um inválido, seria sua culpa, sua!
- Oh, meu querido! - Dyannis disse com uma maturidade incomum, pois não devia ter mais do que treze anos. Tocou levemente seu braço com a mão. - Não tive a intenção de magoá-lo! Estou a brincar, nada mais! Varzil sempre se enfia em enrascadas. No máximo, Papai iria gritar e se descabelar e dizer que por certo Varzil o mandaria para o túmulo antes da hora, nada mais. - Ela jogava a cabeça para trás, parecendo muito com a garotinha que ainda era. - Varzil é como um gato. Sempre cai em pé.
Carolin retirou sua mão. - Esta não foi uma fuga infantil.
- O que quer que tenha sido, - ela replicou, sem se ofender, - nenhum de nós pode ajudá-lo ficando aqui fora soltando faíscas.
Ele suprimiu um sorriso enquanto ela o levava até a sala comum em Hali. Parecia muito com a câmara central em Arilinn embora tivesse mobílias bem diferentes. Quando Carolin visitara antes a Torre Hali, nunca penetrara tão dentro do coração de sua comunidade. O lugar tinha um ar de pomposa antiguidade, de camadas de pó e graxa, todas as preciosas coisas trazidas ali através dos séculos. Diziam que certa vez, estudantes doaram toda a sua herança para a Torre e se comprometeram a estudar ali por toda a vida, como se fossem cristoforos ingressando em Nevarsin. Carolin nunca dera muito crédito a tais histórias. Ninguém pensaria hoje em desistir de todos os seus bens materiais, tanto quanto de qualquer perspectiva de riqueza futura, apenas para entrar em uma Torre. Exceto... por Varzil.
Agora se perguntava, só porque as coisas não eram assim não significava que deviam ter sido diferentes no passado. O que todos acreditavam ser o modo como as coisas eram feitas, era, de fato, não muito mais substancial do que uma ninfa aquática. O pensamento o fez rir, sobre como as coisas seriam ainda mais diferentes no futuro.
Um servo trouxe jaco e pãezinhos de carne. Dyannis recusou ambos, mas Carolin comeu com um súbito apetite. A bebida quente espantou o frio da manhã de seus ossos. Enquanto ele comia, Dyannis falava de coisas inconsequentes. Ela se esforçava claramente para tentar distrai-lo, bancando a anfitriã embora também chegara em Hali a pouco tempo. Sua conversa era inofensiva, sua gentileza evidente. Não havia adotado ainda o distanciamento de tantas outras leronyn. Ele pensou em Maura, e como harmonizava tão habilidosamente as exigências de sua profissão e a Visão com suavidade e muito bom humor.
Pouco tempo depois, a própria parenta de Carolin, Liriel Hastur, veio saudá-lo e preparar Dyannis para a ida ao castelo. Eles, junto com vários outros primos Hastur da Torre, passariam o Festival do Solstício de inverno e os dias precedentes com preparativos de casamento na corte do Rei Felix.
Dama Liriel não era apenas uma habilidosa leronis por seu próprio mérito, mas Comynara. Era alta para uma mulher, esguia e de cabelos vermelhos como muitos dos Hasturs, e vestia sua casta como uma coroa. Ninguém, vendo seu cabelo e postura, teria dúvidas de que devia ser obedecida sem hesitação.
Às palavras de Liriel, Carolin repensou sua situação. Á essa hora, sua ausência já teria sido notada. Mesmo sem o desastre no lago, sua manhã de liberdade havia chegado ao fim. Seu tio o estaria esperando. Mesmo assim, não podia ir embora sem saber como estava Varzil.
Sem perder o ritmo da conversa, Liriel disse que o jovem laranzu estava se recuperando bem de seu infeliz contato com um objeto altamente carregado com laran. Os efeitos foram sem dúvida aumentados pelas águas-nuvem do lago como uma água comum transmitiria as energias de um relâmpago. Os monitores estavam limpando seus canais e era esperado que se recuperasse totalmente. No momento, ela completou com um jeito casual, o jovem estava muito exausto até mesmo para uma viagem curta, portanto lamentavelmente ficaria para trás e se juntaria à viagem quando fosse capaz.
Liriel falava como se já estivesse arranjado que Carolin e seu homem Orain se juntasse ao cortejo. Ela fazia parecer como se nada fosse mais natural do que o herdeiro real escoltá-la adequadamente.
A pequena caravana fazia seu caminho de volta ao castelo. Liriel ia à frente, sentada de lado na sela em uma bela égua branca. Os enfeites do cavalo eram de couro azul tingido com medalhões de prata com desenhos da árvore de Hastur. Vestia um manto cor de vinho em veludo com pele prateada de coelho-de-chifres. Por um instante, a luz fez o tecido parecer vermelho, como se, contra todas as tradições, ela vestisse um manto de Guardião.
Observando Liriel irradiando auto-confiança, Carolin pensou que ela daria uma extraordinária rainha. Aquilo era impossível, é claro. Mesmo que ele não estivesse prometido à Alianora Ardais, Liriel era muito velha para ele. Além do mais, há muito tempo que ela deixara claro que um dos privilégios de sua casta era a liberdade para escolher seu próprio destino, o que não incluía casamento por vontade da família. Ela era do sangue de Hastur de Hastur, uma leronis da Torre Hali, e quem era realmente à sua altura?
Mas eu, eu não tenho muita escolha. Devo casar e ter filhos.
Carolin suspirou. Aquela seria uma união de estado. Se Evanda sorrisse para ele, ganharia uma esposa que pudesse amar. Tentou evocar a imagem da jovem herdeira Ardais. Nunca vira seu rosto, embora a família dele e dela devessem trocar pequenos retratos para que a noiva e o noivo se reconhecessem no dia do casamento. Tudo o que sabia dela era o fato de ser um ano mais velha e que o Conselho Comyn aprovara a união. Presumidamente, ela era fértil e capaz de gerar filhos com laran. Ele não tinha ideia de como ela era ou quais eram seus interesses... provavelmente música, bordado e fofocas.
 - Cavalgue ao meu lado, Carolin, - Liriel disse, gesticulando para que se adiantasse - Há questões que gostaria de discutir com você.
- Para servirte, vai leronis, - ele disse, impulsionando seu cavalo para aumentar o passo.
- Você tem belos modos, mas por um momento, desejo que seja franco. - Ela olhou em direção a Orain.
- Ele é de confiança, - Carolin disse.
- Prefiro não arriscar se puder, - ela disse em um tom que não o convenceu. Ela não podia mais disfarçar os esquemas de energia mesmo se parasse de respirar. - É de Hali que vou falar, Hali e suas Torres irmãs. Tenho que lhe pedir um favor.
- Que favor?
- Ah! - franziu a pálida testa. - Você aprendeu bem a nunca dar sua palavra sem saber do que se trata.
Ela começou a descrever os problemas causados pela redução no número de Torre legítimas. - Sentimos demais a perda de Neskaya e Tramontana. Oh, há círculos renegados operando sem qualquer disciplina ou ética. Dalereuth agora faz clingfire para qualquer um que tenha cobre para pagar por ele, e quanto aquele covil em Temora, é melhor nem comentar. - Sua voz gotejava desprezo. - Os menores reinos não tiveram escolha senão recorrer à eles. Perseguem um ao outro como bandidos.
- O que deve ser feito, então? - O que tinha em mente, uma guerra de conquista para colocar um fim às disputas? Há uma geração, o tirano Damian Deslucido havia tentado aquilo, com desastrosas consequências.
Liriel manteve o olhar fixo adiante, como se visualizasse um futuro que apenas ela podia ver. Quando falou, a arrogância que marcara seus discursos anteriores havia desaparecido. - Queremos... alguns de nós estivemos conversando... acreditamos ser possível... - Ela virou-se para ele, girando na sela tão subitamente que a égua branca se assustou.
- Há rumores sobre o reestabelecimento da Torre Tramontana. Não no lugar antigo, mas próximo. Doran Alton, que é Segundo Guardião em Corandolis, disse que se incumbiria de formar um círculo, mas ainda é muito cedo sem uma Torre. É por esse propósito que viajo até o castelo, não por uma bobagem noturna. E é por isso que pedi sua ajuda.
Em ambos os lados, as colinas nevadas se estendiam como montes de lã. O sol estava bem alto, enchendo os cantos e sombras com luz. As trilhas por onde os cavalos passaram mais cedo naquela manhã haviam se tornado poças. Um cheiro subia da terra, de solo frio, humidade e espera.
- Eu penso que... houve tantas perdas em Tramontana e Neskaya, não há bastante trabalhadores dotados de laran para ir adiante com isso, - Carolin disse. - Como poderia ser reconstruída? Onde encontrarão leronyn para atuarem depois? - Seus olhos se abriram com um novo pensamento. - Não irá sacrificar Hali?
- Não, não! - ela ergueu sua mão livre, deixando a outra, dedos enrolados nas rédeas, no apoio da sela. - Eu nunca sugeriria tal coisa! Muitas das Torres... Hali e Arilinn... têm jovens talentosos, como seu amigo. Alguns em Dalereuth adorariam a chance de fazer trabalho tão leal.
Carolin refletiu. Sim, o que ela disse fazia sentido. Com Varzil e Eduin em treinamento, um deles se tornando um Guardião, o futuro de Arilinn estaria garantido. Cada círculo poderia contribuir com um trabalhador, mais um ou dois de Hali e talvez das outras Torres, Nevarsin ou Corandolis ou mesmo Hestral, embora aquela Torre possuísse um único círculo. Devia ser o suficiente.
- Quem iria? Como seriam escolhidos? - ele perguntou, e percebeu que com a questão, a ideia tinha ido de suposição à intenção.
O sorriso de Liriel foi caloroso, não mais os lábios exprimidos mas uma genuína resposta. - Não pediremos a ninguém que não exprima a real vontade de ir, que não compartilhe nosso sonho. Com um círculo funcional em Tramontana, podemos extender as transmissões além das Hellers. Mensagens não precisarão mais ser encaminhadas custando os limites de nossas forças. Há experiências que são melhores se feitas com rapidez. Eu...
Agora ela ria sinceramente. - Você já deve ter percebido que eu serei um deles. Dama Bronwyn e eu já falamos sobre isso... na verdade, foi ela quem expôs primeiro a ideia. Viajo agora para procurar seu conselho. Portanto, enquanto o resto de vocês se empanturram com a bebida fermentada do Solstício de Inverno, eu e ela estaremos sentadas, confabulando como damas conspiradoras.
- Eu? Empanturrar-me com bebida? Oh, parenta, não tem ideia do quão aterrorizante seria! Melhor ir a pé a um ninho de formigas-escorpião do que se embebedar na corte de meu tio nesta estação! - Ele suspirou. - Qual favor ia mesmo me pedir?
Ela inclinou a cabeça, suas feições ainda iluminadas de fervor. - Quando for a hora e eu tiver apresentado a ele este plano, você pedirá ao Rei Felix para assumir a construção da nova Torre.
- Pedir para Hastur reconstruir a Torre física?
- Torres não se constroem sozinhas. Pedra e massa custam dinheiro, sendo erguidas por meios comuns ou por laran. Deve convencê-lo de que é um bom investimento, Carolin. Afinal, Tramontana lutou contra Hastur na última guerra. Que melhor caminho para assegurar nosso benefício futuro do que posicionar a próxima Torre sob o nosso controle?
Carolin não podia contestar seu raciocínio, e esta parecia uma causa justa. Mesmo concordando em falar com seu tio, ele se perguntou se a alegre certeza de Liriel tinha fundamento. Não havia como olhar para o futuro, como diziam que seu ilustre ancestral, Allart Hastur, fazia, e ver quais escolhas levavam ao desastre e quais à paz. Uma Torre não era um brinquedo, isso ele aprendera em Arilinn. Por um instante, se perguntou o que Varzil tinha visto no lago, se tinha sido o trabalho de laran que havia se descontrolado ou direcionado deliberadamente para algum propósito maligno.
Ou, ainda pior, algum propósito que naquele momento pareceu ser para o bem maior...
Carolin e Liriel ficaram em silêncio. Eles apressaram o passo, com o pônei de Dyannis trotando para acompanhar os cavalos maiores. Sua risada ecoava, o prazer de uma criança no passeio inesperado. Carolin estava feliz por ela vir junto. Seria cruel excluí-la do festival dessa noite só porque Varzil não podia vir.
No jantar daquela noite, Carolin sentou-se ao lado direito de seu tio, com Rakhal no outro. Outros de sua família, incluindo seu primo Lyondri e Dama Liriel, sentaram-se próximos. Abaixo, com os outros parentes, sentou-se Maura Elhalyn e além dela, em outra mesa, Orain e Jandria, a pequena Dyannis e Eduin.
Dyannis e Eduin já conversavam entretidos, a garota ria e gesticulava alegremente. Eduin sorria, concordando, e Carolin pensou que nunca vira seu amigo tão relaxado, quase feliz.
A variedade de velas tornava o ar pesado e dourado, como mel, como se cada rosto que Carolin olhava parecesse brilhar por dentro. Seu coração se enchia com um sentimento que não podia nomear.
Se ao menos Varzil estivesse aqui comigo...
Enquanto pensava naquilo, a sensação da presença de seu amigo o penetrou. A distância da Torre Hali desapareceu. Quase podia ouvir a voz de Varzil.
Está tudo bem com você, bredu?
A telepatia não era forte no laran de Carolin, mesmo assim as palavras pareceram tão claras para ele como se estivessem na mesma sala. Era a força de Varzil, ilusória em seu corpo esguio, quase efeminado, que podia carregar os dois.

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