quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A Forja de Zandru - trecho 57


16



Carolin chegou cedo à câmara do Rei para a primeira audiência desde seu retorno. O guarda admitiu-o pela entrada privada lateral com uma reverência. Ele parou depois da porta, estudando a sala que seria sua um dia. Era uma câmara harmoniosa, senão formal, com uma cadeia de janelas que davam para o leste, clara e bastante aquecida naquela manhã até mesmo para um velho frágil. Ali o rei ouvia juramentos, recebia petições por escrito e decidia outras questões apresentadas a ele por seus conselheiros. Antes aquelas audiências eram frequentes, às vezes diárias, mas na última década, elas se tornaram irregulares enquanto cada vez mais assuntos eram deixados para os subordinados.
Aquilo também irá mudar, agora com o meu retorno.
Carolin lembrou-se de quando vinha ali quando garoto, quando ele e Rakhal sentavam-se com outros nobres para aprender questões da propriedade. Os aromas misturados de poeira e mobília polida aguçaram suas memórias.
Naqueles dias, tudo parecia simples... seu lugar no mundo, as razões das decisões de seu tio, suas noções do que era justo e correto, o que era errado e como devia ser punido. Rakhal era seu primo e companheiro de brincadeiras, e algum dia seria seu fiel conselheiro. Se houve tendências obscuras, manobras ocultas, Carolin estava feliz de não ter tomado conhecimento.
Mas nunca poderia retornar àqueles tempos descomplicados. Era um homem agora, um príncipe pronto para tomar seu lugar no mundo. Devia aprender a pensar e agir como um. As férias em Arilinn tinham acabado.
O pajem que o seguia a todos os lugares parou perto da porta. Carolin começou a rodear o garoto com os seus negócios, depois se controlou. Como perdera rápido o hábito de ter os servos sempre presentes. Foi até o meio círculo de cadeiras atrás das mesas polidas e sentou-se no lugar de sempre ao lado direito do assento elevado do rei.
Minutos depois, pedintes, cortesãos e a audiência encheram a câmara e sentaram-se de acordo com sua posição. Comyn deviam sentar-se em sua própria seção sem divisões, como Dama Liriel Hastur, que tomara a posição mais privilegiada. Pessoas comuns ficavam em pé. Entre eles estavam um juiz da cortes e representantes dos mais velhos da cidade de Hali e Thendara.
Poucos minutos depois, o velho lorde de Elhalyn, que tinha sido conselheiro-chefe de Felix desde antes do nascimento de Carolin, entrou arrastando os pés e sentou-se ao lado do rei. O único assento restante era à direita de Carolin, um lugar reservado ao Rei.
Com um alvoroço e sons das botas dos guardas, Rei Felix entrou. Movia-se com dificuldade, mas dignamente. Rakhal seguia a um passo atrás, seguido por um escriturário carregado de pergaminhos enrolados e papéis. Rakhal colocou uma mão sob o cotovelo do Rei para ajudá-lo a se sentar. Quando Felix estava confortavelmente acomodado, todos se inclinaram cerimoniosamente.
O olhar de Rakhal vacilou em Carolin, sua expressão indefinível. Carolin percebeu o instante de hesitação antes de seu primo dirigir-se ao local vazio.
- Meu garoto, - Felix disse, afagando a mão de Carolin. - É tão bom tê-lo de novo conosco.
Bom, Carolin pensou. O rei estava alerta esta manhã. A incerteza da outra noite deve ter sido algo passageiro. - É bom estar em casa.
As graciosas apresentações restantes logo foram concluídas. Rakhal disse, - Devemos terminar rapidamente para não sobrecarregar Sua Majestade. - Ele gesticulou para que o escriturário colocasse a pilha de documentos diante dele.
Carolin olhou de relance para Lorde Elhalyn, que como conselheiro-chefe, sempre apresentou os trabalhos diários de Rei Felix. O idoso lorde parecia levemente incomodado. Teria algo acontecido, algum escândalo que lhe custara o favor especial do Rei?
O sargento anunciou a abertura da sessão e todos se inclinaram. Rakhal pegou o rolo contendo o trabalho diário e apresentou-o ao Rei, que acenou, concordando em ouvir aqueles casos.
A primeira ordem de serviço era o pedido para financiar a reconstrução da Torre Tramontana. Carolin não pensara que Rei Felix ousaria manter Liriel esperando pelas questões inferiores, não com ela sentada na fileira da frente, costas retas, mãos sobre o colo. Nenhum único detalhe em sua aparência ou comportamento era inapropriado para uma dama de sua posição. Comynara e Hastur. Com sua presença, ela emprestava solenidade aos procedimentos.
Na noite anterior, enquanto Carolin se demorava após seu ultimo copo de vinho com seu tio e Rakhal, ele tocara no assunto. Poucas decisões importantes eram feitas durante a sessão pública. Rakhal já sabia da proposta.
- Quando Tramontana caiu, perdemos um valioso recurso. - Carolin apoiou seu argumento ponto a ponto, procurando cuidadosamente por sinais de que o Rei estava entendendo. - Agora, a comunicação com as Hellers não são confiáveis. Não demorará muito para que nos excluam completamente, ou reduzam a velocidade de mensagens ao passo do cavalo mais rápido.
- Precisamos de um posto avançado por lá, - Rakhal disse, movendo-se incansavelmente em sua cadeira. - Mas as transmissões são o menor de nossos problemas. Quanto mais poderoso se torna Hastur, mais desesperados estarão nossos inimigos. Devemos expandir nossa capacidade de defesa, e isso significa mais Torres sob nosso controle.
- Não sei em que o mundo está se tornando, - Felix disse, balançando a cabeça. - Antigas Torres, novas Torres com o mesmo nome. É tudo tão confuso. Não entendo porque as coisas não conseguem ficar iguais.
- É isso que estamos tentando fazer, Sua Majestade, - Rakhal disse calmamente. - Erguer uma nova Torre no mesmo lugar, para que as coisas fiquem como estavam.
- Ah, sim, então tudo bem, está bom.
Mais tarde, Carolin disse, - Não acho que a leronyn que fez a proposta pensava em um posto militar ou uma fábrica para fogo aderente, mas um lugar para treinar novos estudantes, para fazer um trabalho pacífico e produtivo.
- Eles farão o que mandarmos, - Rakhal respondeu, sorrindo. - Em nome do rei, é claro.
- Vivi junto do povo da Torre, - Carolin o relembrou, - e não abriria mão tão facilmente de sua independência e liberdade de recursos. Sua disciplina é tão grande quanto a de qualquer soldado, e não são camponeses que podem ser castigados se não obedecerem. Acho insensato criar tais expectativas na mente do Rei. As Torres são poderosas por seu próprio direito. Se não concordamos com eles sobre respeito e autodeterminação, chegará o dia em que não teremos escolha.
- O quê, quer que gastemos na reconstrução de uma Torre e não peçamos nada em troca?
Carolin balançou a cabeça. - Pelo contrário, a Torre estaria livre para fazer o que faz melhor.
Lembrou-se daquela conversa naquele momento. Com um pouco de discussão, Rei Felix leu em voz alta a breve declaração aprovando o projeto. Da fileira da frente da seção Comyn, Liriel olhou para Carolin e então, muito levemente, inclinou sua cabeça. Ela podia dever um favor a ele, mas sem dúvida isso não incluía obediência cega.
Os vários documentos seguintes pareciam rotineiros, questões que já haviam sido decididas e requeriam apenas o consentimento do Rei. Havia um pouco de discussão quanto a próxima, uma tarifa disputada entre as cidades de Hali e Thendara. A questão era estranha a Carolin e ele ouviu com interesse enquanto dois representantes apresentavam seus casos. Hali invocou um precedente legal obscuro que Thendara desafiou, pedindo o testemunho do juiz da cortes.
- Devemos pesar o bem-estar das respectivas partes envolvidas, - o juiz disse. - Cada um tem seu interesse aqui. A questão é se a força de seu veredicto anterior é suficiente para contrabalancear os argumentos obrigados pelo dano.
- A questão é clara, - disse Thendara, olhando para Rakhal. - Não podemos permitir que uma minoria desafie os desejos de muitos. Precisamos de um novo precedente, um que esteja baseado na realidade de hoje, não nos caprichos de algum juiz que foi provavelmente subornado.
- Suborno é uma acusação séria, - Carolin disse.
- É exatamente o tipo de caso no qual precisamos de proteção, - Hali replicou. - Sua Majestade, como defensor de todos os seus assuntos, nós lhe apelamos... - Seus olhos se ergueram para a face de Rei Felix, que estivera olhando para fora da janela pelos últimos cinco minutos.
- Vocês todos fizeram suas questões amplamente claras, - Rakhal interrompeu, - e meu tio as dará a devida consideração. Assuntos complicados como este não podem ser decididos tão rapidamente. Voltem no mês seguinte e nós o discutiremos.
Os dois representantes, que há apenas um momento haviam sido adversários, trocaram um olhar assustado. Hali engoliu, visivelmente reprimindo uma réplica.
- Alteza, - o juiz disse, sua voz tensa, - este caso já vem se prolongando por uma estação inteira. As partes concordaram com todos os aspectos exceto este. Sem uma lei exata na percentagem das tarifas, o grão vai ficar parado nos depósitos pelo resto do inverno.
- Não entendo a urgência da situação, - Carolin disse. - Certamente não estragará no frio.
- Já há fome em Thendara, - o representante daquela cidade explicou. - O preço do trigo já ultrapassou o que os pobres podem pagar. Os mais afetados são os que dependem das doações do Rei, pois esses suprimentos vêm com taxas pagas em espécie.
- Deve haver uma lei de qualquer jeito, - disse o juiz. - E devido à decisão anterior ter sido tomada por Sua Majestade, apenas ele pode determinar sua relevância.
- Tio, - Carolin disse, gentilmente interrompendo o devaneio do homem, - Acho sábio dar a esses bons homens uma decisão. É seu próprio povo quem sofrerá se este caso continuar sem uma solução.
- Então suponho que devo, - Rei Felix disse. Ele ergueu seus magros ombros, como se recordando a si mesmo. - Sim... ah... devidamente. Deixe-me ver o registro ao qual se refere.
Rakhal lançou a Carolin um olhar furioso e tateou os papéis, finalmente puxando um. Suas margens estavam descoloridas e curvadas pela idade.
Felix estudou o documento, lábios se movendo enquanto corria os dedos ao longo de cada linha do texto. - Sim, bem... ah... Elhalyn? Lembra-se deste negócio?
O velho lorde endireitou-se na cadeira e seus olhos brilharam. - Majestade, sim. Como vai se recordar, a tarifa base era muito mais baixa naqueles tempos. Esta lei era para ser um aumento temporário para equalizar os custos relativos das diferentes rotas de transporte, mas deste então se tornou permanente. As taxas envolvidas foram aumentadas inúmeras vezes por outras razões. Se esta lei fosse invocada agora, o resultado seria um fardo ainda maior sobre os mercadores que jamais fora pretendido. Que Sua Majestade pretendia na época, isto é.
- É claro, - Rakhal disse, - Sua Majestade é livre para reinterpretar a lei de qualquer maneira que achar conveniente.
Carolin não gostou do tom bajulador de seu primo, nem de seu desrespeito pelo velho lorde. Elhalyn poderia ser reduzida para privilégio real, mas ele ainda era o membro mais velho do conselho e, o que era mais importante, era o único entre eles que relembrava as circunstâncias originais.
O rei suspirou. Seu olhar vagueou à sua direita e por um momento ele pareceu surpreso de ver Carolin sentado ali. - O quê... o quê você aconselharia, meu garoto?
Carolin respirou. O conveniente seria manter o precedente. Os mercadores reclamariam entre si sobre o aumento dos custos, mas encontrariam maneiras de aumentar seus preços para compensar. De um jeito ou de outro, por impostos ou taxas, o preço do grão aumentaria. As pessoas que pagariam pelo menos eram aqueles que podiam arcar com a carga extra.
Por todos aqueles anos atrás, o rei barganhara com seu povo, mesmo que não estivesse na lei. O Rei certamente era capaz de proclamar o que quisesse ou preferisse, o que seus soldados podiam forçar. Mas era justo? Era honesto? Não havia uma obrigação implícita da parte do rei em reconsiderar uma medida temporária quando a necessidade havia passado?
- Eu não concordo com o precedente, - Carolin disse. - Sua Majestade decretou uma tarifa, devido circunstâncias especiais. Não vejo razão nisso agora. O mais importante é permitir que esse grão chegue ao povo que mais precisará dele. Ninguém deveria lucrar de famintos ou indefesos.
Rakhal disse em voz baixa apenas para Carolin, - Se tomar esta posição, Primo, então seus tesouros sumirão em questão de segundos. Como acha que armamos nossos soldados ou pagamos nossos jantares, senão com as tarifas e taxas?
- Isso pode ser verdade, mas se é sábio, é outra questão inteiramente diferente.
Carolin passara muito tempo nas ruas, ali em Hali e em Arilinn, para tão facilmente descartar a vontade do povo.
- Temo que sua temporada em Arilinn o deixou muito balançado, Primo, - Rakhal disse, erguendo uma sobrancelha enquanto dava um sorrisinho para a audiência. - Deveria levar mais em consideração a opinião do rei, e bem menos a da multidão lá fora. É dever deles arcar com suas necessidades, não nossa de comprometer nossos objetivos em lugar dos deles. Recordo-lhe de suas aulas de história. Há uma boa razão para o Comyn comandar e para aquele rebanho cego obedecer.
Carolin encarou-o. Como todas as pessoas educadas de sua geração, ele estudara os piores excessos da Era do Caos, os programas de procriação do laran e os estranhos e terríveis Dons que produziram. Comyn voava para onde quisessem em seus carros-aéreos, suas casas eram aquecidas e iluminadas por laran, e círculos inteiros se dedicavam em fabricar bestas por ganância ou prazer. Até agora, porém, ele pensara pouco sobre como tudo aquilo era pago, e em quantas pessoas trabalharam para que poucos pudessem viver em luxo. Não havia desculpa para a ignorância e o descuido da juventude.
Ambos podem ser remediados, disse a si mesmo, e pensou se o mesmo podia ser dito sobre a ganância.


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