sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A Forja de Zandru- trecho 58


17


Na noite do Festival de Inverno, o grande saguão no Castelo Hastur brilhava com milhares de luzes. Coroas de folhagens, presas com fitas e frutinhas vermelhas, enchiam o ar de agridoce. Desde a noite anterior, os deliciosos aromas de pão condimentado e bolos de nozes dos fornos se misturavam com o do boi que assava sobre a cavidade aberta no pátio.
O banquete começou à tardinha com as bênçãos formais do rei. Primeiro a família real, depois os outros parentes Hastur, e finalmente os nobres e cortesãos reunidos tomaram seus lugares ao lado das mesas do banquete para ouvir as honrarias.
Em anos Carolin não via seu tio parecer tão vigoroso. Talvez fosse por Felix Hastur não falar apenas por si mesmo, mas como a encarnação, o descendente do primeiro Hastur, o filho de um deus, que assumira a mortalidade pelo amor de uma mulher.
Em alguns lugares, o manto da Abençoada Cassilda era usado pela mulher do castelo, parada ao lado de seu marido como Dama e Senhor da Luz. Juntos eles personificavam os antigos ciclos da luz e escuridão, inverno e primavera, calma e regozijo, nascimento e morte. Diziam que as Torres tinham seu próprio Festival de Fim de Ano, com kireseth e todo o tipo de devassidão. Como ele ainda não havia passado um Festival em uma Torre, nem tivera vontade, nunca iria descobrir.
Nenhum comportamento escandaloso aconteceria ali, apesar de sempre haver bebês nascendo nove meses após o Festival. Ainda assim, uma aura rodeava o velho Rei enquanto erguia suas mãos e declamava as antigas palavras. Sua frágil voz ressoava pelo saguão. Então ele bateu palmas três vezes e a audiência explodiu em alegria.
Nas galerias, músicos começaram uma alegre melodia. Um autêntico exército de serviçais saiu dos corredores de onde esperava, carregando bandejas com carnes suculentas, pernis e assados e enormes e suculentas costeletas, saborosas tortas decoradas com emblemas estilizados, frango recheado e caramelizado, e cestas de pão do feriado. Mais serviçais trouxeram canecas de vinho e cerveja quente temperada, a bebida favorita de Rei Felix.
Enquanto o salão de danças era preparado, a multidão crescia, com cada dignitário de Hali e das terras ao redor juntando-se aos convidados do castelo, família e cortesãos.
O programa daquela tarde começou com Rei Felix e Dama Liriel juntando-se para uma majestosa caminhada. Observando o rei que havia sido grisalho e velho desde que podia se lembrar, Carolin viu os ecos de uma antiga graça, pelo sangue chieri que corria no Comyn e especialmente em sua própria família. Felix podia já ter vivido demais em termos humanos, mas quando a música era leve e a luz suave, seus passos as acompanhavam.
A velha Dama Bronwyn descera para o banquete e ficara para honrar a primeira dança do Rei com sua presença, depois se retirando aos seus aposentos. Carolin, como sempre, dançou com uma procissão de parentas, começando com a de mais alta posição, que era Liriel. Como uma estátua de gelo em uma torrente branca e prata, ela movia-se perfeita através dos intrincados movimentos da dança. Carolin como todos de sua casta e época, tomara aulas de dança logo que começara a andar, mas não conseguia acompanhar sua calma precisão.
Orain sentou-se do lado de fora nessa parte da tarde, dizendo estar guardando sua força para a dança mais agitada já que os mais velhos haviam ido para a cama e a cerveja do feriado animava os jovens. A esposa de Orain se retirara imediatamente após a cerimônia. Carolin suspeitou que estivesse cansado de dançar com sua prima Jandria e preferia bem mais a energia masculina da dança da espada.
Carolin notou Eduin e Dyannis juntos. Eles rodeavam o salão, esquecidos dos outros casais. Em qualquer outra noite, teria sido impróprio, se não escandaloso, para um casal solteiro dançar a secain em público. Carolin achou que eles ficavam muito bem juntos. O vestido rosa da garota brilhava como uma pérola no fundo do mar de Temora em contraste com o casaco de rico cetim cor de bronze e o manto curto de seu parceiro. Eduin inclinava sua cabeça próximo a dela, seu braço protetoramente ao seu redor.
Uma esguia figura em cores sóbrias entrou na pista de dança e parou, tensa.
- Varzil! - Carolin exclamou.
Varzil entrou como uma lança sombria através da glamorosa multidão. Assim que Dyannis o viu, parou de dançar e deu-lhe entusiasmadas boas-vindas. Com um movimento abrupto, ele a afastou. Carolin não pode ouvir as palavras sob a música, mas notou a dura expressão de Varzil e o súbito corar nas faces da garota.
- Eu danço com quem eu quiser! - Dyannis gritou. - E você não tem o direito...
- Não queríamos... - Eduin começou, erguendo as mãos.
- E agora, - Carolin disse, usando sua melhor voz cortes. - O que está havendo?
- Não vale a pena desperdiçar saliva, - Dyannis disparou. Jogando os cachos, passou sua mão pelo braço estendido de Eduin. - Por favor, faça a gentileza de me escoltar de volta às outras damas. Estou cansada demais para continuar.
Com isso, ela arrastou Eduin. Varzil fez menção de segui-los, mas Carolin impediu-o com um toque.
- Qual o problema?
- Qual o problema? - Varzil repetiu com escárnio. - Minha irmã... ele está dançando com minha irmã!
- Eduin? E porque não deveria? - Carolin disse. - Ela está certa, você sabe. Mesmo aqui em uma corte das terras baixas, é perfeitamente aceitável para um amigo próximo de seu irmão convidá-la para dançar, mesmo que não seja Festival. Não é menos apropriado para Eduin do que é para mim, e eu fiz exatamente isso enquanto você convalescia, é melhor do que deixá-la sentada toda amuada quando qualquer tolo cego podia ver o quanto queria dançar. Vai brigar comigo, também? Ela está se divertindo, e Eduin também. Aqui na frente de todos, o que há de mal nisso? Ou confia tão pouco nela que precisa guardar sua honra a todo o momento?
Retirando-se da pista de dança, Varzil balançou a cabeça. - Eu não... não faria sentido algum para você.
- Está falando sobre aquela antiga rinha entre vocês? - Carolin perguntou, seguindo-o. - Só porque ele se comportou mal quando você chegou a Arilinn? Ele me disse uma dúzia de vezes o quanto se arrependeu daquilo, como vem tentando compensar desde então. Pensei que não fosse capaz de carregar rancor, Varzil, ou de fazer sua irmã infeliz na noite do Festival de Inverno.
Varzil virou-se, andando até passar o grupo de velhos lordes e bacharéis parados ao redor do salão. Ali, nos cantos escuros e passagens em arco, ele parou. Seus ombros subiam e desciam com cada pesado suspiro. Carolin seguiu à distância, observando. Após um longo momento, ele se aproximou e apoiou uma mão gentilmente no ombro de Varzil.
Ele tem estado doente, longe de casa. Eventualmente ele e Eduin esquecerão o passado, mas não posso forçá-lo sob essas condições.
- Sinto muito, - Carolin disse. - Quase provoquei uma discussão entre nós, e não quero isso. Vamos aproveitar o feriado como amigos.
Um calafrio percorreu através da magra estrutura de Varzil. - Você está certo, como sempre. Dois dias atrás, falamos de homens achando meios pacíficos de ajustar suas contas, e aqui estou eu, pronto para socar Eduin no nariz. - Ele forçou uma risada. - Não devia tentar resolver diferenças na pista de dança.
- Bem, se acha necessário, - Carolin disse em um tom mais leve, - podia desafiá-lo na dança da espada. Você sabe, quem pula mais longe ou chuta mais alto ou gira mais vezes sem cair no chão.
- No meu estado, ele ganharia na primeira rodada, mesmo se estivesse cego e aleijado. Não, é melhor deixar para lá. - Apesar das palavras, Varzil pareceu pensativo, de cara fechada.
Carolin, temendo que Varzil se retirasse de vez das festividades, sugeriu novamente que convidassem Maura e Jandria para dançar a próxima rodada. Para sua surpresa, Varzil concordou.
As danças haviam se tornado cada vez mais espirituosas e menos ordenadas, com muitas oportunidades para os casais fazerem contato visual ou mesmo roubarem um beijo. Por acaso, a próxima era decorosa o bastante para ganhar a aprovação da exigente dama de companhia. Maura saltitou através das figuras ao lado de Carolin. Jandria estava com um incomum humor tagarela. Quando os músicos tocavam as cordas que sinalizavam as cortesias finais, até mesmo Varzil estava sorrindo.
Carolin escoltou Maura de volta ao seu assento e demorou-se ali por um momento. Ela olhou de volta para a pista de dança onde Varzil e Jandria ainda conversavam animadamente.
- Varzil parece melhor, - Maura disse. - Por um momento, quando ele desceu, eu me perguntei... há alguma questão mal resolvida entre ele e Dyannis? Ela é o que o povo de Venza chama de cabeça-dura, e eu diria que ele é igual, por causa de como você me disse que ele foi admitido em Arilinn. Aquilo nem sempre traz harmonia para a família.
Então Maura também sentira a discórdia cruzar a sala. Carolin sorriu, pensando haver pouca privacidade entre telepatas, mesmo se mantendo a voz baixa. Ele disse, - Acho que é uma questão de Varzil descobrir que sua irmãzinha é uma mulher crescida e capaz de se virar sozinha.
- Com certeza! - Maura disse com vontade. - Não esperaria menos, pois ela tem o talento e a ambição para se dar bem em uma Torre, em vez de ficar em casa sentada remendando meias e fazendo bebês. - Ela virou a cabeça, olhando Varzil e Jandria. - Eles fazem um bom par, não acha? Varzil não sabe o que fazer com ela, e Jandria tem menos paciência ainda de receber instruções de um rapaz de sua própria idade do que Dyannis.
- Devo resgatá-lo, então?
- Oh, não! - os olhos de Maura brilhavam. - Acho que é bom para os dois. Especialmente na Noite do Festival!
Quando a dança acabou, Varzil inclinou-se novamente para Jandria. Ele pôde ver em seus olhos que ela dançaria mais uma rodada ou duas com ele, pois além de gostar de dançar, não se preocupava muito com os flertes usuais. Ele não tinha interesse nela além da diversão mútua dos passos da música.
A dança e a breve conversa que a seguiu havia lhe dado tempo para relaxar, para decidir o que fazer sobre Dyannis. Carolin estava certo, é claro. Ela não rompera nenhuma regra social ao aceitar o convite para dançar com Eduin. Mas não precisava olhar para Eduin daquela maneira tão apaixonada. Ela era muito jovem, muito impressionável por uma corte tão grande. Deveria ter ficado em Hali para os feriados, ou ao menos ter seu irmão presente como guia e acompanhante.
A pergunta de Carolin irritou os confins de sua mente... Ou confia tão pouco nela que deve guardar sua honra a cada instante?
Por que ela tinha que escolher Eduin entre todas as pessoas?
Bem, ele colocaria um fim nisso. Uma palavra ou duas e ela voltaria ao seu juízo normal. Em poucos dias, retornaria a Hali e seu treinamento. Enquanto isso, se quisesse dançar, então ele mesmo dançaria com ela.
Ele a encontrou sentada ao lado de Maura Elhalyn. Enquanto se aproximava, ela ergueu os olhos. Seu pensamento tocou os dele, ainda bem destreinado, mas doce e claro.
Varzil, é tão bom vê-lo bem.
Ela estava tão feliz com ela mesma e suas recém-desenvolvidas habilidades, que ele não teve coragem de mencionar a grosseria de falar através da mente em companhia de não-telepatas. Sorriu e estendeu a mão para ela. Ela parecia um pouco surpresa quando ele a convidou formalmente para a próxima dança.
Diferente da última, leve o bastante para se conversar, esta era cheia de passos vivos e giros complicados com o casal do canto. Varzil tropeçou no seu próprio pé.  
Dyannis riu para ele. - Tem certeza de que está pronto para isso?
- Preferiria que não estivesse, - ele admitiu. - Mas preciso falar com você.
Ela escorregou a mão para a curva de seu cotovelo, confortável e certa de si, e levou-o para fora da pista de dança. A menina teimosa que conheceu quando criança dera lugar a uma charmosa jovem. Quando estavam bem afastados dos outros dançarinos, ela o soltou e olhou diretamente em seus olhos de um jeito que ele achou desconcertante. Se não fosse seu irmão, tal ousadia certamente teria sido motivo para um escândalo.
- Então? - ela disse, uma sobrancelha se erguendo divertida. - Porque está tão triste?
- Preciso falar com você… sobre a dança com Eduin.
- Está se desculpando por não chegar cedo para dançar comigo? Ótimo! Desculpas aceitas. Só isso?
- Não, não é só isso! - Ele queria sacudi-la. - Não quero você dançando com ele. Não é questão de ser apropriado... como Carolin explicou tão corretamente, não há nenhuma objeção. Mas preferiria que você não tivesse nenhum tipo de... - ele procurou a palavra, - ligação com Eduin. Não que fosse durar mais do que dez dias, com seu retorno a Hali e ele a Arilinn. Mas não seria... apropriado.
- E porque não? - as sobrancelhas incolores se uniram como pálidas nuvens de tempestade. - Ele não é um completo laranzu de Arilinn, tão merecedor do carinho de uma mulher quanto você? Há alguma falha de caráter que você notou e o Guardião dele não? Diga-me exatamente porque a objeção por Eduin, e não por Carolin ou Orain ou mesmo aquele libertino do Rakhal? - Ela apertou os olhos. - É por ele não ser suficientemente nobre de nascimento, não é? Deveria ter vergonha, Varzil, de julgar um laranzu por sua família e não por seu caráter e habilidade!
Varzil estendeu sua mão como que barrando suas palavras. - Não fiz tal julgamento, irmã! Nem nunca questionei o talento de Eduin. Tenho trabalhado com ele no círculo o bastante para conhecer sua capacidade. Seu Dom não é a questão aqui. Ele está aliás apenas dançando com você, e não pedindo-a em casamento.
- Exatamente.
- E eu preferia que não dançasse. Como seu irmão e parente mais próximo, eu ordeno...
- Ordena? Não posso acreditar no que estou ouvindo! Você presumiria... não sou seu cavalo, cachorro ou mesmo sua esposa! Se tiver alguma preocupação real, darei a devida consideração, mas não considero seu... seu infundado... irracional... ignorante desejo razão suficiente para nada!
Dyannis parou, respiração pesada, rosto e pescoço corado de nervosismo. Jogando a cabeça para trás e tilintando os sininhos brancos em seu cabelo, ela o empurrou para longe. Sem mais palavras, forçou seu caminho pelo emaranhado de nobres, inconsciente de suas expressões de espanto.



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