terça-feira, 15 de março de 2011

A Forja de Zandru - trecho 12

Autor: Marion Zimmer Bradley e Deborah J. Ross
Tradução: Gisele Conti


...
Na manhã seguinte, Carolin e Eduin passaram por baixo dos arcos da Torre a caminho da Cidade de Arilinn em direção ao mercado matutino acompanhados por um dos kyrri. Como apenas não-humanos e Comyn podiam atravessar o Véu, todos faziam turnos com as tarefas diárias, mesmo os novatos mais jovens. O dia de outono estava fresco. A chuva da noite anterior havia lavado qualquer sinal de poeira do ar e a cidade brilhava. Além da bruma surgia os Montes Gêmeos, seus picos tremeluzindo.
Carolin parou no lugar onde o garoto Ridenow esteve. Embora nenhum traço fosse visível, nenhuma mancha ou marca na rocha envelhecida, Carolin sentiu uma presença remanescente tão grande que podia jurar que ainda havia alguém ali. Imagens brilharam em sua mente, um pouco lembrança, um pouco outra coisa. Ele imaginou o garoto, não tão jovem como supôs na primeira vez, apenas magro e baixo, seu rosto pálido e muito sério.
Enquanto Carolin observava, as feições de Varzil mudaram daquelas de um garoto crescido, para as de um homem maduro. Ainda era esguio, mas carregava uma confiança silenciosa que Carolin já havia visto em experientes espadachins. Havia traços de prata em seus cabelos e linhas demarcavam seus olhos e boca. Uma expressão de compaixão com um toque de tristeza jazia em sua face. Vestia um manto escuro solto com um cinto, mas Carolin não podia distinguir a cor, vermelho ou marrom, enquanto a visão começava a turvar. Varzil ergueu uma mão em saudação e um anel com uma pedra preciosa emitiu um brilho branco.
A sensação de presciência surgiu, e Carolin parou com sua cesta de mercado na mão.
- Vamos logo com isso, Carlo, - Eduin disse. Ele usou o apelido familiar, embora não se conhecessem muito bem. Carolin estava em Arilinn apenas há alguns meses, enquanto Eduin começara seu treinamento ali há quatro anos atrás. Era tempo o bastante para que Eduin conhecesse seu próprio valor. Ele tinha uma vida nas Torres e certamente se tornaria um habilidoso mecânico de matriz ou técnico, talvez até mesmo um Guardião se pudesse agüentar a disciplina.
Carolin aguardou. Não tinha dúvida alguma do que havia visto. Não era um laranzu, mas tinha o verdadeiro sangue Comyn. As forças da mente eram tão reais quanto podia agüentar. E ele próprio não conseguiria continuar com as tarefas comuns da manhã, como se nada tivesse acontecido.
- Continue, - ele disse ausente. - Estarei logo atrás.
- Mas, Carlo, já estamos atrasados... as melhores abóboras já terão acabado...
- Não se as pegarmos primeiro!
Eduin saiu sem pressa, o kyrri apressando-se em seu encalço. Poucos minutos depois, Carolin desceu o corredor até os aposentos do Guardião. Dois dos técnicos sênior estavam prestes a entrar. Um era Gavin Elhalyn, segundo em posição depois de Auster na Torre. Também era parente distante de Carolin.
- Preciso falar com Auster, - Carolin disse. - É importante.
Gavin franziu o cenho, claramente dividido entre sua responsabilidade e sua relação consangüínea com Carolin. Era Comyn e laranzu, mas Carolin seria Rei um dia.
Lerrys passou pela abertura. - O que quer que seja pode esperar, rapaz. O próprio Auster nos convocou.
Carolin reprimiu uma resposta, percebendo muito tarde o quanto seria inútil. Aquilo era, apesar de tudo, uma Torre, onde pessoas falavam com suas mentes tão livremente quanto falavam com suas bocas. Estava começando a entender o porquê de ter sido mandado a Arilinn. Não era apenas para cultivar seu modesto laran, mas para se preparar para as exigências da liderança. Em casa, tinha aprendido a falar com cuidado; ali na Torre, aprenderia a guardar seus próprios pensamentos.
- Está tudo bem. - Auster abriu a porta. Seu rosto parecia cansado, mas não a luz em seus olhos. - Carlo irá apenas nos aborrecer até que diga o que quer. É de família. Os Hasturs nunca desistem facilmente. Entrem todos, e em um instante ouvirei o garoto.
Auster voltou para seu lugar usual, uma cadeira de braço acolchoada. Os dois outros homens se posicionaram ao lado da porta, como se esperassem ordens.
Enquanto pensava em Auster como segundo primo de sua tia Ramona Castamir, Carolin não tinha dúvidas de êxito. Mas agora, o manto vermelho formal de Auster brilhava na luz refletida da lareira, os restos de uma pequena chama jaziam contra a noite fria de outono. Carolin lembrou-se que este era um dos homens mais poderosos em Darkover, e dentro daquelas paredes, sua palavra era absoluta.
Há mais de um tipo de poder, Carolin disse a si mesmo, assim como há mais de um tipo de verdade.
Um quarto homem esperava dentro dos aposentos, mudando constantemente de um pé para outro. Carolin não o reconheceu, apenas a sutil riqueza de seu traje, um casaco forrado de veludo com acabamento em pele, grossas calças de lã sobre botas de couro macio, o fino laço em suas mangas e gola, a corrente de argolas de ouro e cobre em seu pescoço. Carolin reconheceu instantaneamente seu ar de autoridade.
Em um piscar de olhos, o olhar do homem o encontrou. Algo sussurrou na mente de Carolin, inexprimível. A expressão do homem não mudou, mesmo assim Carolin sentiu sua alteração, pôde quase captar seu pensamento, Então este é o filhote de Hastur.
Carolin, atormentado pela onda de inimizade, estudou por um momento a face do homem mais velho. Este homem era um inimigo? Seus tutores sempre o avisaram para lembrar-se de nomes e aparências. Mas não conseguiu detectar nem um sinal de familiaridade.
Naquele instante, notou uma onda de raiva controlada.
Como eles ousam? Como ousam me questionar?
Auster e Gavin não deram nenhum sinal de estarem lendo os pensamentos do homem, embora a sala vibrasse com tanta tensão.
- É como lhe disse, - o homem mais velho disse. - Meu filho veio por sua própria conta, sem meu conhecimento ou aprovação. - E só Aldones sabe quanto problema isso acarretará! - Nada que possam dizer mudará minha decisão.
- Você... você é o pai do garoto que veio pedir para ser admitido na Torre esta manhã, - Carolin disse.
O homem inclinou a cabeça e respondeu educadamente, - Sou Felix Ridenow.
- Agradecemos-lhe a cortesia de sua visita, - Auster disse. - E iremos, é claro, considerar todos os fatores envolvidos neste caso.
- Não há nada a considerar, vai tenerezu. A aventura doentia de meu filho acabou. Ele voltará para casa comigo como planejado. Desejo-lhes um bom dia.
Gavin e Lerrys escoltaram Dom Felix na saída da sala com impecável cortesia e igualmente inconfundível suspeita.
O que aconteceu aqui? Com um calafrio, Carolin entendeu.
Não importa o quão talentoso este Varzil seja, ele é suspeito apenas por ser um Ridenow! E seu próprio pai não concordará com sua estadia por exatamente a mesma razão. Esta disputa deveria ter sido resolvida há muito tempo atrás!
Carolin fora envolvido nas intrigas da corte, mas sempre pensara nas Torres como acima daquelas pequenas manobras. A contrariedade corria como veneno em suas veias.
Varzil era tão cheio de paixão. Mesmo da sacada, Carolin o sentira. Varzil havia ultrapassado o Véu, aquele que prova seu puro sangue Comyn, e o kyrri lhe havia respondido. Não faziam isso frequentemente. E agora Auster dispensava seu potencial, sua dedicação, questionava esse homem digno que era seu pai, tudo por questões políticas! Não era justo. Mais do que isso, não era honesto.
Auster virou-se, gesticulando para que Carolin se sentasse. - Você está preocupado com o garoto Ridenow.
Sentando-se, Carolin concordou. - Sei que não é problema meu questionar suas decisões, mas está... está errado mandá-lo embora.
- Errado? - Uma sobrancelha ergueu-se, mas não por raiva.
Carolin, sabendo que Auster captaria a emoção por trás de seu pensamento, se não o exato significado, ergueu os olhos para olhar diretamente para ele. - O que quero dizer é... não é justo não dar nem ao menos uma chance por causa de sua família.
- Você, um Hastur, diz isso?
Raiva apossou-se de Carolin. Nunca esquecerei quem eu sou? Terei que escolher meus amigos pelos seus parentes em vez de seu caráter? - Falo do que é certo, não necessariamente do que é viável. Não é melhor pensar um pouco mais nesta questão? Além disso, dizem que a única maneira de eliminar completamente um inimigo é torná-lo um amigo.


continua ...

Nenhum comentário:

Postar um comentário