domingo, 29 de maio de 2011

Redescoberta - Trecho 1



Autores: Marion Zimmer Bradley e Mercedes Lackey



Tradução: André Pereira




1


− Ysaye? Você está aí em cima? − Cautelosamente, Elizabeth Mackintosh enfiou a cabeça no poço onde ficava o núcleo do computador. Era uma mulher pequena e magra, não exatamente bonita, mas dona de uma vivacidade ao mesmo tempo deli-cada e intensa que tornava a “beleza” irrelevante. Tinha abundantes cabelos escuros e olhos azuis meigos e límpidos, e uma voz que soava, ao ecoar pelo poço, como se ela estivesse cantando. Não se interessava muito pelo computador, e o poço estreito onde ficavam seus componentes funcionais deixava-a positivamente claustrofóbica. Dissera numa ocasião a Ysaye que a escuridão abafada, pontilhada por minúsculas luzes vermelhas, fazia-a sentir-se rodeada por demônios de olhos vermelhos. Ysaye rira, achando que era brincadeira, mas era verdade.
− Termino num minuto − disse Ysaye Barnett. − Só preciso reencaixar essa última placa. − Ela recolocou a placa em que estava trabalhando e pressionou o painel delicadamente para descer pelo tubo. Na gravidade baixa do núcleo, tudo o que precisou foi um pequeno empurrão. A gravidade e a sua velocidade foram aumen-tando conforme se aproximava do fundo, e ela aterrissou de joelhos ao lado de Elizabeth. A gravidade na sala do computador principal era nível oito e Elizabeth, como sempre, encontrava-se aferrada ao corrimão que percorria o centro da sala. Variações gravitacionais a deixavam nervosa; ela vivia na esperança de que um dia a nave encontrasse um planeta onde ela pudesse se estabelecer. Muitas vezes especulava por que inventara de ir para o espaço para começo de conversa... mas então se lembrava de como a Terra era superpovoada, ruidosa e dependente da tecnologia e percebia que jamais poderia voltar. Só os muito ricos podiam pagar por espaço e privacidade na Terra; Elizabeth, com seu minúsculo salário de antropóloga cultural, nunca poderia sequer bancar a privacidade de um diminuto cubículo como aquele que tinha na nave.
Ysaye, pelo contrário, parecia ter nascido para a vida a bordo de uma espaçonave. Zonas de alterações gravitacionais eram brincadeira para ela – meio como uma versão adulta de amarelinha. Mantinha seus cabelos crespos escuros trançados meticulosamente, a fim de não embaraçá-los no rosto, no equipamento com que trabalhava ou nos dutos de ventilação. O seu alojamento estava sempre tão arrumado que mesmo se a gravidade fosse anulada ainda assim nada sairia do lugar; conhecia as programações, procedimentos e exercícios de emergência da nave de trás para frente. Os oficiais inferiores afirmavam que literalmente todas as informações do computador estavam duplicadas no cérebro de Ysaye e que tais informações podi-am ser acessadas de ambas as fontes com a mesma rapidez.
Um homem que trabalhava no terceiro turno chegava a jurar que o computador acordava à noite e chamava por ela. Ysaye informara-o, com uma expressão marota nos olhos castanhos brilhantes, que ele precisava tomar cuidado com sua tendência ao antropomorfismo. Não que Ysaye não falasse com o computador, naturalmente; mas ela procurava nunca fazer isso quando alguém pudesse ouvir. Afinal, ela tinha uma reputação como cientista para preservar.
– Isto deve resolver nossa pequena irregularidade – comentou Ysaye, satisfeita. Nada lhe proporcionava mais alegria do que encontrar a solução para um quebra-cabeça, e esse em especial vinha atormentando os técnicos há dias, uma Perda-de-Sinal intermitente da sonda-robô que precedia a nave em cerca de um dia. – Eu falei que o problema estava no nosso hardware e não no da sonda. E eu vou arrancar o couro de alguém por não efetuar testes regulares para verificar esse tipo de coisa.
– Mais alguma novidade sobre o nosso novo planeta? – David Lorne, noivo de Elizabeth, entrou avançando cautelosamente pelo corrimão para encontrar as mulheres. Elizabeth estendeu a mão automaticamente e ele pegou-a com automatismo equivalente. Como uma reação fototrópica, pensou Ysaye. David era o sol de Elizabeth, e às vezes parecia que sem ele Elizabeth poderia murchar e morrer.
– Nenhum nome – ela respondeu, passando automaticamente para a forma de referência bibliotecária e digitando comandos no console. – Mesmo a estrela só se encontra na categoria de não-abreviadas. Estrela Cottman. Seis planetas, de acordo com nossos registros, mas – ela fez surgir um diagrama na tela do console – as últimas informações de varredura acrescentam um sétimo. Três pequenos planetas rochosos e quatro grandes gasosos. O quarto a partir do sol é habitável, ou ao menos limitadamente habitável. Há escassez de metais pesados, mas não seria o primeiro planeta colonizado escasso em metais. Mas é pleno de oxigênio.
– É aquele com as quatro luas? Que exótico... acho que daria muitos temas para baladas – comentou Elizabeth.
– Acontece que tudo lhe dá idéias para baladas – disse Ysaye afetuosamente.
– E por que não? – ela retrucou com a maior seriedade. Ysaye balançou a cabeça. Elizabeth tinha a mania de relacionar tudo com alguma balada. Estava certo que música folclória era o seu hobby e antropologia sua especialidade, e estava certo que uma tremenda quantidade de histórias primitivas era encontrada em canções e baladas, mas... havia um limite, ao menos no que dizia respeito a Ysaye. A ocasião em que Elizabeth quisera comparar a sua tendência a desaparecer por dias quando estava investigando um defeito no computador à abdução do trovador Thomas pela rainha do reino encantado... demoraram semanas para Ysaye tirar da cabeça toda a baboseira sobre elfos e fadas morando no núcleo.
– É habitado? – indagou David. – Isto é, algum sinal de seres inteligentes? – Para Elizabeth e David, era essa a questão prioritária. Não fazia muita diferença para Ysaye; ela pertencia à tripulação. Mas David e Elizabeth queriam se casar e formar uma família, e não poderiam fazer isso na espaçonave. Crianças não podiam nem viajar numa nave – não se quiserem desenvolver qualquer coisa similar a um esqueleto humano. Corpos imaturos eram muito mais frágeis do que as pessoas imaginavam. Eles ainda dispunham de tempo; os três haviam entrado para o Serviço logo ao sair da universidade e ainda não haviam completado trinta anos. Teoricamente, eventualmente seria descoberto um planeta adequado para colonização ou um centro de comunicação do Império onde as equipes de comunicação e exploração poderiam se instalar e continuar durante vinte anos ou mais. Mas após três anos sem nada exceto meteoritos, Elizabeth, pelo menos, estava ficando ansiosa.
– Vocês dois são telepatas – Ysaye brincou – digam vocês. – Foi como eles se conheceram, como voluntários para uma experiência no laboratório parapsicológico da universidade. Infelizmente os instrumentos não haviam sido preparados para medir amor à primeira vista, ou talvez tivessem obtido informações bem interessantes. Ysaye estava trabalhando como técnica naquele dia, e registrara diligentemente todas as outras coisas que as máquinas mediram. Mas nun-=ca contou a ninguém os outros efeitos que viu – ou pensou que viu. Afinal, “ver auras” era uma experiência muito subjetiva.
Elizabeth não era de forma nenhuma reticente com relação ao seu “dom” – muito embora se mostrasse um pouco defensiva. David simplesmente não ligava; se as pessoas não acreditavam nele, era problema delas, e não dele. Se devidamente pressionada, Ysaye admitia possuir uma certa intuição, ou o ocasional pressentimento. Fora isso, ela preferia não falar a respeito. “Coisas invisíveis para o olhar” e o conhecimento que ela possuía a partir de nenhuma fonte discernível eram coisas que ela utilizava, mas não comentava.
Ela sempre fora um pouco solitária, e seu “talento” a tornara ainda mais só. Aprendera desde cedo a transmitir as coisas que “sabia” na forma de perguntas às pessoas; uma criança não corrigia os adultos na sua família, provavelmente por que se supunha que qualquer criança sabia menos que qualquer adulto. Mas Ysaye tinha muita dificuldade para esconder o que sabia, de maneira que optara pela solidão como uma melhor alternativa de “esconderijo”.
Ysaye também procurara ocultar sua inteligência com o maior cuidado, por trás de uma máscara de inocência infantil, e passara todos os instantes possíveis com o computador. Isso não foi tão difícil quanto seria para outra criança; seus pais tinhamna matriculado em instrução computadorizada – chamavam de “ensino doméstico” – ao invés de mandá-la para a escola pública. Eles achavam os valores ensinados nas escolas terráqueas irreligiosos e miseravelmente deficientes em éticas, morais qualquer diferenciação entre certo e errado, um tema que sua mãe considerava particularmente importante. Ysaye às vezes ainda podia escutar sua mãe no fundo da sua mente sempre que alguém se entregava a éticas duvidosas e lógicas confusas.


continua...

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