17
Na noite do Festival de Inverno, o grande saguão no Castelo Hastur
brilhava com milhares de luzes. Coroas de folhagens, presas com fitas e
frutinhas vermelhas, enchiam o ar de agridoce. Desde a noite anterior, os
deliciosos aromas de pão condimentado e bolos de nozes dos fornos se misturavam
com o do boi que assava sobre a cavidade aberta no pátio.
O banquete começou à tardinha com as bênçãos formais do rei. Primeiro a
família real, depois os outros parentes Hastur, e finalmente os nobres e
cortesãos reunidos tomaram seus lugares ao lado das mesas do banquete para
ouvir as honrarias.
Em anos Carolin não via seu tio parecer tão vigoroso. Talvez fosse por
Felix Hastur não falar apenas por si mesmo, mas como a encarnação, o
descendente do primeiro Hastur, o filho de um deus, que assumira a mortalidade
pelo amor de uma mulher.
Em alguns lugares, o manto da Abençoada Cassilda era usado pela mulher
do castelo, parada ao lado de seu marido como Dama e Senhor da Luz. Juntos eles
personificavam os antigos ciclos da luz e escuridão, inverno e primavera, calma
e regozijo, nascimento e morte. Diziam que as Torres tinham seu próprio
Festival de Fim de Ano, com kireseth
e todo o tipo de devassidão. Como ele ainda não havia passado um Festival em
uma Torre, nem tivera vontade, nunca iria descobrir.
Nenhum comportamento escandaloso aconteceria ali, apesar de sempre haver
bebês nascendo nove meses após o Festival. Ainda assim, uma aura rodeava o
velho Rei enquanto erguia suas mãos e declamava as antigas palavras. Sua frágil
voz ressoava pelo saguão. Então ele bateu palmas três vezes e a audiência
explodiu em alegria.
Nas galerias, músicos começaram uma alegre melodia. Um autêntico
exército de serviçais saiu dos corredores de onde esperava, carregando bandejas
com carnes suculentas, pernis e assados e enormes e suculentas costeletas,
saborosas tortas decoradas com emblemas estilizados, frango recheado e caramelizado,
e cestas de pão do feriado. Mais serviçais trouxeram canecas de vinho e cerveja
quente temperada, a bebida favorita de Rei Felix.
Enquanto o salão de danças era preparado, a multidão crescia, com cada
dignitário de Hali e das terras ao redor juntando-se aos convidados do castelo,
família e cortesãos.
O programa daquela tarde começou com Rei Felix e Dama Liriel juntando-se
para uma majestosa caminhada. Observando o rei que havia sido grisalho e velho
desde que podia se lembrar, Carolin viu os ecos de uma antiga graça, pelo
sangue chieri que corria no Comyn e especialmente em sua própria
família. Felix podia já ter vivido demais em termos humanos, mas quando a
música era leve e a luz suave, seus passos as acompanhavam.
A velha Dama Bronwyn descera para o banquete e ficara para honrar a
primeira dança do Rei com sua presença, depois se retirando aos seus aposentos.
Carolin, como sempre, dançou com uma procissão de parentas, começando com a de
mais alta posição, que era Liriel. Como uma estátua de gelo em uma torrente
branca e prata, ela movia-se perfeita através dos intrincados movimentos da
dança. Carolin como todos de sua casta e época, tomara aulas de dança logo que
começara a andar, mas não conseguia acompanhar sua calma precisão.
Orain sentou-se do lado de fora nessa parte da tarde, dizendo estar
guardando sua força para a dança mais agitada já que os mais velhos haviam ido
para a cama e a cerveja do feriado animava os jovens. A esposa de Orain se
retirara imediatamente após a cerimônia. Carolin suspeitou que estivesse
cansado de dançar com sua prima Jandria e preferia bem mais a energia masculina
da dança da espada.
Carolin notou Eduin e Dyannis juntos. Eles rodeavam o salão, esquecidos
dos outros casais. Em qualquer outra noite, teria sido impróprio, se não
escandaloso, para um casal solteiro dançar a secain em público. Carolin achou que eles ficavam muito bem juntos.
O vestido rosa da garota brilhava como uma pérola no fundo do mar de Temora em
contraste com o casaco de rico cetim cor de bronze e o manto curto de seu
parceiro. Eduin inclinava sua cabeça próximo a dela, seu braço protetoramente
ao seu redor.
Uma esguia figura em cores sóbrias entrou na pista de dança e parou,
tensa.
- Varzil! - Carolin exclamou.
Varzil entrou como uma lança sombria através da glamorosa multidão.
Assim que Dyannis o viu, parou de dançar e deu-lhe entusiasmadas boas-vindas.
Com um movimento abrupto, ele a afastou. Carolin não pode ouvir as palavras sob
a música, mas notou a dura expressão de Varzil e o súbito corar nas faces da
garota.
- Eu danço com quem eu quiser! - Dyannis gritou. - E você não tem o
direito...
- Não queríamos... - Eduin começou, erguendo as mãos.
- E agora, - Carolin disse, usando sua melhor voz cortes. - O que está havendo?
- Não vale a pena desperdiçar saliva, - Dyannis disparou. Jogando os
cachos, passou sua mão pelo braço estendido de Eduin. - Por favor, faça a
gentileza de me escoltar de volta às outras damas. Estou cansada demais para
continuar.
Com isso, ela arrastou Eduin. Varzil fez menção de segui-los, mas
Carolin impediu-o com um toque.
- Qual o problema?
- Qual o problema? - Varzil repetiu com escárnio. - Minha irmã... ele
está dançando com minha irmã!
- Eduin? E porque não deveria? - Carolin disse. - Ela está certa, você
sabe. Mesmo aqui em uma corte das terras baixas, é perfeitamente aceitável para
um amigo próximo de seu irmão convidá-la para dançar, mesmo que não seja
Festival. Não é menos apropriado para Eduin do que é para mim, e eu fiz
exatamente isso enquanto você convalescia, é melhor do que deixá-la sentada
toda amuada quando qualquer tolo cego podia ver o quanto queria dançar. Vai
brigar comigo, também? Ela está se divertindo, e Eduin também. Aqui na frente
de todos, o que há de mal nisso? Ou confia tão pouco nela que precisa guardar
sua honra a todo o momento?
Retirando-se da pista de dança, Varzil balançou a cabeça. - Eu não...
não faria sentido algum para você.
- Está falando sobre aquela antiga rinha entre vocês? - Carolin
perguntou, seguindo-o. - Só porque ele se comportou mal quando você chegou a
Arilinn? Ele me disse uma dúzia de vezes o quanto se arrependeu daquilo, como
vem tentando compensar desde então. Pensei que não fosse capaz de carregar
rancor, Varzil, ou de fazer sua irmã infeliz na noite do Festival de Inverno.
Varzil virou-se, andando até passar o grupo de velhos lordes e bacharéis
parados ao redor do salão. Ali, nos cantos escuros e passagens em arco, ele
parou. Seus ombros subiam e desciam com cada pesado suspiro. Carolin seguiu à
distância, observando. Após um longo momento, ele se aproximou e apoiou uma mão
gentilmente no ombro de Varzil.
Ele tem estado doente, longe de
casa. Eventualmente ele e Eduin esquecerão o passado, mas não posso forçá-lo
sob essas condições.
- Sinto muito, - Carolin disse. - Quase provoquei uma discussão entre
nós, e não quero isso. Vamos aproveitar o feriado como amigos.
Um calafrio percorreu através da magra estrutura de Varzil. - Você está
certo, como sempre. Dois dias atrás, falamos de homens achando meios pacíficos
de ajustar suas contas, e aqui estou eu, pronto para socar Eduin no nariz. -
Ele forçou uma risada. - Não devia tentar resolver diferenças na pista de
dança.
- Bem, se acha necessário, - Carolin disse em um tom mais leve, - podia
desafiá-lo na dança da espada. Você sabe, quem pula mais longe ou chuta mais
alto ou gira mais vezes sem cair no chão.
- No meu estado, ele ganharia na primeira rodada, mesmo se estivesse
cego e aleijado. Não, é melhor deixar para lá. - Apesar das palavras, Varzil
pareceu pensativo, de cara fechada.
Carolin, temendo que Varzil se retirasse de vez das festividades,
sugeriu novamente que convidassem Maura e Jandria para dançar a próxima rodada.
Para sua surpresa, Varzil concordou.
As danças haviam se tornado cada vez mais espirituosas e menos ordenadas,
com muitas oportunidades para os casais fazerem contato visual ou mesmo
roubarem um beijo. Por acaso, a próxima era decorosa o bastante para ganhar a
aprovação da exigente dama de companhia. Maura saltitou através das figuras ao
lado de Carolin. Jandria estava com um incomum humor tagarela. Quando os
músicos tocavam as cordas que sinalizavam as cortesias finais, até mesmo Varzil
estava sorrindo.
Carolin escoltou Maura de volta ao seu assento e demorou-se ali por um
momento. Ela olhou de volta para a pista de dança onde Varzil e Jandria ainda conversavam
animadamente.
- Varzil parece melhor, - Maura disse. - Por um momento, quando ele
desceu, eu me perguntei... há alguma questão mal resolvida entre ele e Dyannis?
Ela é o que o povo de Venza chama de cabeça-dura, e eu diria que ele é igual,
por causa de como você me disse que ele foi admitido em Arilinn. Aquilo nem
sempre traz harmonia para a família.
Então Maura também sentira a discórdia cruzar a sala. Carolin sorriu,
pensando haver pouca privacidade entre telepatas, mesmo se mantendo a voz
baixa. Ele disse, - Acho que é uma questão de Varzil descobrir que sua
irmãzinha é uma mulher crescida e capaz de se virar sozinha.
- Com certeza! - Maura disse com vontade. - Não esperaria menos, pois
ela tem o talento e a ambição para se dar bem em uma Torre, em vez de ficar em
casa sentada remendando meias e fazendo bebês. - Ela virou a cabeça, olhando
Varzil e Jandria. - Eles fazem um bom par, não acha? Varzil não sabe o que
fazer com ela, e Jandria tem menos paciência ainda de receber instruções de um
rapaz de sua própria idade do que Dyannis.
- Devo resgatá-lo, então?
- Oh, não! - os olhos de Maura brilhavam. - Acho que é bom para os dois.
Especialmente na Noite do Festival!
Quando a dança acabou, Varzil inclinou-se novamente para Jandria. Ele
pôde ver em seus olhos que ela dançaria mais uma rodada ou duas com ele, pois
além de gostar de dançar, não se preocupava muito com os flertes usuais. Ele
não tinha interesse nela além da diversão mútua dos passos da música.
A dança e a breve conversa que a seguiu havia lhe dado tempo para relaxar,
para decidir o que fazer sobre Dyannis. Carolin estava certo, é claro. Ela não
rompera nenhuma regra social ao aceitar o convite para dançar com Eduin. Mas
não precisava olhar para Eduin daquela maneira tão apaixonada. Ela era muito
jovem, muito impressionável por uma corte tão grande. Deveria ter ficado em
Hali para os feriados, ou ao menos ter seu irmão presente como guia e
acompanhante.
A pergunta de Carolin irritou os confins de sua mente... Ou confia tão pouco nela que deve guardar
sua honra a cada instante?
Por que ela tinha que escolher Eduin entre todas as pessoas?
Bem, ele colocaria um fim nisso. Uma palavra ou duas e ela voltaria ao
seu juízo normal. Em poucos dias, retornaria a Hali e seu treinamento. Enquanto
isso, se quisesse dançar, então ele mesmo dançaria com ela.
Ele a encontrou sentada ao lado de Maura Elhalyn. Enquanto se
aproximava, ela ergueu os olhos. Seu pensamento tocou os dele, ainda bem
destreinado, mas doce e claro.
Varzil, é tão bom vê-lo bem.
Ela estava tão feliz com ela mesma e suas recém-desenvolvidas habilidades,
que ele não teve coragem de mencionar a grosseria de falar através da mente em companhia
de não-telepatas. Sorriu e estendeu a mão para ela. Ela parecia um pouco
surpresa quando ele a convidou formalmente para a próxima dança.
Diferente da última, leve o bastante para se conversar, esta era cheia
de passos vivos e giros complicados com o casal do canto. Varzil tropeçou no
seu próprio pé.
Dyannis riu para ele. - Tem certeza de que está pronto para isso?
- Preferiria que não estivesse, - ele admitiu. - Mas preciso falar com
você.
Ela escorregou a mão para a curva de seu cotovelo, confortável e certa
de si, e levou-o para fora da pista de dança. A menina teimosa que conheceu
quando criança dera lugar a uma charmosa jovem. Quando estavam bem afastados
dos outros dançarinos, ela o soltou e olhou diretamente em seus olhos de um
jeito que ele achou desconcertante. Se não fosse seu irmão, tal ousadia certamente
teria sido motivo para um escândalo.
- Então? - ela disse, uma sobrancelha se erguendo divertida. - Porque está
tão triste?
- Preciso falar com você… sobre a dança com Eduin.
- Está se desculpando por não chegar cedo para dançar comigo? Ótimo! Desculpas
aceitas. Só isso?
- Não, não é só isso! - Ele queria sacudi-la. - Não quero você dançando
com ele. Não é questão de ser apropriado... como Carolin explicou tão
corretamente, não há nenhuma objeção. Mas preferiria que você não tivesse
nenhum tipo de... - ele procurou a palavra, - ligação com Eduin. Não que fosse durar mais do que dez dias, com
seu retorno a Hali e ele a Arilinn. Mas não seria... apropriado.
- E porque não? - as sobrancelhas incolores se uniram como pálidas
nuvens de tempestade. - Ele não é um completo laranzu de Arilinn, tão merecedor do carinho de uma mulher quanto
você? Há alguma falha de caráter que você notou e o Guardião dele não? Diga-me
exatamente porque a objeção por Eduin, e não por Carolin ou Orain ou mesmo
aquele libertino do Rakhal? - Ela apertou os olhos. - É por ele não ser
suficientemente nobre de nascimento, não é? Deveria ter vergonha, Varzil, de
julgar um laranzu por sua família e
não por seu caráter e habilidade!
Varzil estendeu sua mão como que barrando suas palavras. - Não fiz tal
julgamento, irmã! Nem nunca questionei o talento de Eduin. Tenho trabalhado com
ele no círculo o bastante para conhecer sua capacidade. Seu Dom não é a questão
aqui. Ele está aliás apenas dançando com você, e não pedindo-a em casamento.
- Exatamente.
- E eu preferia que não dançasse. Como seu irmão e parente mais próximo,
eu ordeno...
- Ordena? Não posso acreditar no que estou ouvindo! Você presumiria...
não sou seu cavalo, cachorro ou mesmo sua esposa! Se tiver alguma preocupação
real, darei a devida consideração, mas não considero seu... seu infundado...
irracional... ignorante desejo razão
suficiente para nada!
Dyannis parou, respiração pesada, rosto e pescoço corado de nervosismo.
Jogando a cabeça para trás e tilintando os sininhos brancos em seu cabelo, ela
o empurrou para longe. Sem mais palavras, forçou seu caminho pelo emaranhado de
nobres, inconsciente de suas expressões de espanto.
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