Marion Zimmer Bradley
Tradução Ariane Pierini
...
Os nyssomus estavam entre os oddlings que mais se assemelhavam aos humanos, e muitos tinham servido à corte de Ruwenda quando Haramis era criança. Seu melhor amigo, Uzun, nyssomu e músico da corte, possuía bastante habilidade para a mágica, além do talento musical, e foi ele que ensinou a visão na água para Haramis. Era um método sabidamente incerto de adivinhação, apenas um pouco melhor como método de comunicação, mas Haramis descobriu que quando combinado com seus poderes de arquimaga, ficava bem preciso. Era mais fácil e mais confiável, no entanto, se feito com o estômago vazio.
Ela clareou a mente o máximo que conseguiu, apesar da impossibilidade de banir por completo o sonho recente, e olhou através da água.
Quase no mesmo instante parecia que voava pelo ar, como se montasse um dos grandes abutres que costumavam transportá-la, e aproximou-se de uma torre. Reconheceu a construção. Era a torre principal da cidadela, uma adição relativamente recente construída por humanos (nos últimos quinhentos anos), enquanto o prédio principal era um sobrevivente dos tempos dos Desaparecidos.
Aterrissou suavemente no telhado da torre e deixou seu corpo espiritual descer pela clarabóia até o cômodo mais alto. Naquele momento, em sua visão, o cômodo estava vazio. A última vez que esteve ali em carne e osso o lugar estava cheio de soldados labornoki tentando capturar os dois, Uzun e ela, e só a chegada oportuna de dois abutres gigantes para levá-los embora do telhado da torre possibilitou a saída de lá com vida. Lembranças daquele dia tão distante voltaram, enquanto Haramis continuava a traçar sua rota de fuga.
O pavimento logo abaixo tinha sido dormitório para alguns soldados da cidadela. Até onde conseguia lembrar, a idéia maluca de colocar os soldados dormindo dezessete andares acima de tudo tinha sido do seu avô. Seu pai fora muito mais um estudioso do que um guerreiro e não se preocupou em modificar esse arranjo.
Obviamente alguém tinha sido sensato o bastante para acabar com esse costume, antes de ser sacramentado pela tradição. Embora o quarto tivesse meia dúzia de camas e seus respectivos baús de roupas, havia apenas duas pessoas no antigo dormitório, um menino e uma menina, ambos aparentando ter doze anos de idade. Estavam sentados no chão, um de frente para o outro, no centro de um raio de sol que entrava por uma janela aberta.
- Acho que funciona com a luz – dizia o menino.
Ele era magro, tinha o cabelo cheio e negro, precisando de um corte. Caía por cima do rosto quando se debruçava sobre o objeto que estavam estudando, e ele o afastava com a mão, distraído. Assim que tirava a mão o cabelo caía de novo, mas ele ignorava.
- Não pode ser só isso – objetou a menina.
O cabelo dela era ruivo e brilhante, penteado em tranças soltas que caíam até a cintura. Haramis não vira ninguém com o cabelo assim exceto sua irmã Kadiya e, pelo jeito, aquela menina cuidava tanto da aparência quanto Kadiya. As duas crianças usavam roupas que obviamente tinham sido herdadas de crianças, maiores, e nenhum dos dois parecia se importar em mantê-las limpas. O chão de madeira não era varrido há meses, ou anos, mas a poeira mostrava marcas que sugeriam que as crianças, ou outras pessoas, costumavam se deitar no chão, indiferentes à sujeira e às farpas. E a menina era ainda mais magra que o menino. Será que ninguém alimenta essas crianças?, pensou Haramis.
continua...
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